O que furacões no Hemisfério Norte têm a ver com seca e incêndios na Amazônia?

Tempestade mais devastadora a atingir região da Flórida em mais de 100 anos ilustra intensidade da temporada no Atlântico este ano, que também tem sido marcado por seca e fogo na floresta tropical

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Por Juliana Domingos de Lima
Atualização:

O furacão Milton está previsto para atingir a costa da Flórida na noite de quarta-feira, 9, e foi classificado como uma tempestade de categoria 5, categoria máxima da escala, após ganhar força no Golfo do México.

A região da baía de Tampa não é atingida por um grande furacão há um século - a última vez foi em 1921, quando uma tempestade de categoria 3 atingiu os cerca de 120 mil habitantes da baía, que hoje abriga uma região metropolitana com cerca de 3 milhões de pessoas.

Imagem de satélite feita às 12:15 EDT em 8 de outubro pela National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) mostra o furacão Miltonno Golfo do México Foto: NOAA/AP

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Há apenas algumas semanas, em 26 de setembro, o furacão Helene já havia devastado uma área cerca de 240 quilômetros ao norte de Tampa, causando mais de 200 mortes.

Em 2024, a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos (NOAA, em inglês) previu atividade acima do normal para a temporada, causada principalmente pelo La Niña e por temperaturas oceânicas superiores à média. A temporada de furacões, que se inicia em junho e vai até novembro no Oceano Atlântico no Hemisfério Norte, teve sua “abertura” em 2024 com o furacão de categoria 5 mais precoce já observado no Atlântico: o furacão Beryl, que atingiu o Caribe, o México e o sul dos Estados Unidos em julho.

Enquanto isso, a Amazônia registra em 2024 o maior número de focos de queimada desde 2010, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Os incêndios são alimentados por uma seca prolongada no bioma, causada principalmente pela crise climática e intensificada pelo El Niño. Dados científicos e empíricos mostram que esses fenômenos climáticos no hemisfério norte e sul podem estar relacionados.

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A ligação forte entre o risco de seca e incêndios florestais na bacia amazônica e furacões devastadores na costa do Atlântico Norte foi demonstrada em estudo de 2015 feito por pesquisadores da Universidade da Califórnia, Irvine, e da Nasa, a agência espacial americana.

Prédio em Plainfield, Vermont, nos Estados Unidos, atingido pelo Furacão Beryl em julho de 2024. Foto: Ted Shaffrey/AP

Também tem sido observada empiricamente pelo menos desde o início dos anos 2000 por meteorologistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

“Tudo está associado, interligado entre si. A atmosfera não nos permite fazer fronteiras”, disse ao Estadão o meteorologista do Inpa Renato Senna.

Furacões retiram umidade da Amazônia

Senna aponta ter chovido menos do que deveria em grande parte da bacia amazônica desde o 2º semestre de 2023, situação que deve perdurar nos próximos meses.

Segundo ele, essa seca está associada a dois eventos oceânicos: o aquecimento do Oceano Pacífico pelo El Niño e o aquecimento do Atlântico, que tem um ciclo ainda mais longo. Esse segundo tem relação com a formação dos furacões no Hemisfério Norte.

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Queimada em Santo Antonio do Matupi, sul do Amazonas, em 2019.  Foto: Gabriela Biló/Estadão

“Uma temporada de furacões muito ativos no hemisfério norte indica retirada de umidade da Amazônia, [que fica] mais seca por consequência, vide os anos de 2005, 2010, 2015 e 2016, 2023 e provavelmente 2024 novamente”, diz Senna.

Em relação a 2005, ano em que o furacão Katrina devastou a cidade de Nova Orleans, pesquisadores da Universidade da Califórnia, Irvine, e da Nasa detectaram que as condições oceânicas que levaram a uma temporada de furacões severas também reduziram o fluxo de umidade atmosférica para a América do Sul, provocando uma seca histórica na Amazônia.

No estudo de 2015, foram examinados dados históricos de tempestades e das temperaturas da superfície do mar, assim como de incêndios detectados por satélites da Nasa.

Os resultados mostraram um padrão: uma progressão entre o Atlântico Norte mais aquecido, o sul da Amazônia mais seco e propenso a incêndios e a chegada de furacões mais destrutivos na América do Norte e América Central.

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Segundo o autor principal, Yang Chen, isso acontece porque as águas quentes do Atlântico Norte ajudam os furacões a se desenvolverem e ganharem força e velocidade em direção à costa norte-americana.

Ao mesmo tempo, tendem a puxar para o norte a Zona de Convergência Intertropical, uma grande faixa de chuvas tropicais, desviando a umidade da porção sul da Amazônia.

O menor volume de chuvas faz com que o lençol freático não seja totalmente reabastecido ao fim da estação chuvosa, e a menor quantidade de água armazenada no solo na estação seca seguinte afeta a evapotranspiração das plantas para a atmosfera, deixando-a mais seca. Esse processo também cria condições para a proliferação de incêndios florestais.

Os furacões e o clima

Segundo a previsão da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos (NOAA, em inglês), há 85% de chance de uma temporada de furacões acima do normal no Atlântico em 2024.

A instituição calcula com 70% de confiança que haverá de 17 a 25 tempestades com ventos a partir de 63 km/h ou mais nos próximos meses. Dessas, de 8 a 13 devem se tornar furacões, com ventos de 119 km/h ou mais, incluindo 4 a 7 furacões grandes (de categoria 3, 4 ou 5, com ventos a partir de 179 km/h).

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A magnitude dessas tempestades, que também estão ocorrendo mais cedo no ano, é impulsionada pela temperatura recorde das águas oceânica, que dá mais energia às tempestades. Têm relação tanto com as mudanças climáticas quanto com a atual transição do El Niño para o La Niña.

Segundo explicação divulgada pela empresa de meteorologia brasileira MetSul, o La Niña diminui o cisalhamento do vento na região onde os furacões se formam e avançam, aumentando sua probabilidade. Ele atua resfriando a temperatura do Oceano Pacífico, mas influencia o clima em escala global e já estaria ativo entre os meses de agosto e outubro, auge da temporada de furacões.

Pesquisas têm mostrado que os furacões têm ficado mais fortes globalmente nas últimas décadas. Eles também estão menos previsíveis. No Atlântico Norte, um estudo de 2019 mostrou que eles estão ganhando intensidade mais rápido do que antes, com ventos mais rápidos conforme avançam por um oceano mais quente.

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