A expressão logística reversa pode parecer muito técnica, mas diz respeito a um princípio simples de responsabilidade ambiental: o lixo gerado do que é produzido, vendido e consumido precisa ser recolhido e reaproveitado, ou destinado adequadamente se não puder ser reutilizado pela indústria.
Essa destinação se tornou obrigatória no País em 2010, com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que estabeleceu uma “guarda compartilhada” dos resíduos entre empresas, consumidores e poder público. A implementação dessa política vem ganhando força mais recentemente com a adoção dos certificados de crédito de reciclagem, institucionalizados por um decreto do governo federal em 2022.
O Brasil gera cerca de 80 milhões de toneladas de resíduos sólidos por ano e recicla apenas 4%, segundo dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). O índice está muito abaixo do apresentado por países da mesma faixa de renda, como Chile e África do Sul, que reciclam em média 16% de seus resíduos, de acordo com a International Solid Waste Association (ISWA).
“A regulação é super importante para acelerar o processo, porque vai trazendo essa urgência. Ainda tem muito por fazer”, diz Maíra Pereira, diretora executiva da Ambipar Environment, empresa que atua na estruturação da cadeia de reciclagem.
Os certificados são um sistema de compensação ambiental, semelhante ao de créditos de carbono. Na prática, em vez de cada empresa se responsabilizar diretamente pelo recolhimento dos resíduos que produz, ela tem a opção de comprar créditos para financiar a coleta de uma quantidade de material reciclável equivalente ao resíduo que gera.
A compra de um certificado serve como garantia, perante o poder público, do cumprimento da lei pela empresa, e também gera renda extra para as cooperativas de catadores que já realizam esse trabalho. São eles os responsáveis pela coleta de 90% de todos os resíduos recicláveis no País, segundo a empresa EuReciclo. Esse volume chegou a 1 milhão de toneladas de materiais em 2021, de acordo com o Anuário da Reciclagem.
Modelo europeu
Modelo utilizado na Europa, o crédito de reciclagem começou a ser adotado no Brasil há cerca de cinco anos, através da iniciativa de entidades e empresas, com o objetivo de facilitar a execução da logística reversa, incluindo a participação de micro e pequenas empresas.
“É uma das ferramentas que podem viabilizar economicamente a logística reversa e a reciclagem, e ainda ter um fundo social de remuneração dos operadores”, diz Ricardo Lopes Garcia, presidente do conselho gestor do Instituto Giro.
Os créditos foram aplicados inicialmente no âmbito da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e se espalharam por outros Estados como Mato Grosso do Sul, Amazonas e Rio Grande do Sul, até ganhar abrangência nacional com a regulamentação pelo governo federal.
A partir daí, foram criadas entidades gestoras, como o Instituto Rever e o Instituto Giro, autorizadas a emitir os certificados de maneira confiável e que também fomentam a profissionalização da cadeia.
“Desde a criação do sistema de logística reversa da Fiesp, a gente já comercializou mais de 250 mil toneladas (de material reciclável) na modalidade de crédito. No ano passado, que foi o primeiro ano completo do Rever operando o sistema, ultrapassamos 35 mil toneladas”, diz Paulo Petroni, presidente do Instituto Rever.
Em média, a remuneração do Rever ao serviço prestado pelas cooperativas de catadores em 2023 foi de R$ 180 a tonelada.
“A cooperativa tem a receita da venda da massa (do material coletado), que é paga pelo reciclador, mas emite uma nota fiscal adicional pelo serviço. A gente reconhece o serviço de limpeza urbana prestado pelo catador e paga um crédito de reciclagem em dinheiro. É a compensação mais simples que pode ser feita”, explica Petroni.
Segundo Telines Basilio, o Carioca, presidente da cooperativa de reciclagem paulistana Coopercaps, os créditos vêm de fato aumentando a receita. “A gente utiliza parte desse recurso para pagar a conta de luz, de água. Isso diminui as despesas, a sobra líquida acaba ficando maior e a gente consegue distribuir um valor mais justo para os nossos cooperados”, explica. “Nosso faturamento mensal não pode se dar exclusivamente com a separação e a venda do material, precisamos criar outras receitas e uma delas é justamente o crédito.”
Mas os desafios para que catadores na informalidade ou em pequenas associações em todas as regiões do País possam se apropriar dessa renda extra são enormes. “A grande maioria das associações e cooperativas tem um layout produtivo que não atende a todo o volume coletado e isso diminui a produção, carece de investimento”, diz Carioca. Ele também destaca que a esmagadora maioria dos catadores trabalha na informalidade.
Tendo essa dificuldade em conta, a profissionalização das cooperativas de reciclagem é uma das áreas em que tem atuado a Ambipar Environment e o Instituto Giro. “A gente formaliza a situação dos catadores autônomos, traz para uma condição de emissão de nota fiscal, de governança, de eficiência produtiva e melhora muito as condições de abastecimento desses grupos”, diz Maíra Pereira, da Ambipar Environment.
Segundo a diretora executiva, essa jornada de profissionalização tem resultado em um aumento da produção de cerca de 20 para 90 toneladas por mês para as cooperativas e em uma ampliação da renda dos catadores de uma faixa de R$ 700 para R$ 2.500 a R$ 3.000.
Nesse sistema, o retorno dos materiais também pode gerar benefícios para o consumidor final. Quem leva materiais recicláveis até um dos ecopontos da Ambipar obtém um crédito em “tricoins”, moeda digital que pode ser convertida em créditos de transporte, na conta de luz, em livrarias ou em um valor na conta bancária.
Cada tipo de material tem sua contagem de pontos: um quilo de plástico, por exemplo, equivale a 100 tricoins, que por sua vez podem ser convertidas em R$ 0,35 no Bilhete Único ou em outros tipos de crédito.
Reciclar basta?
Aprovado em 2022, o Plano Nacional dos Resíduos Sólidos (Planares) tem como meta atingir uma taxa de reciclagem de 48% até 2040. Também estipula para 2024 o fechamento de lixões e aterros controlados.
Segundo o Panorama dos resíduos sólidos da Abrelpe de 2022, 61% dos resíduos coletados no Brasil continuam sendo encaminhados para aterros sanitários, enquanto 39% vão para lixões e aterros controlados. Esse último porcentual equivale a 29,7 milhões de toneladas com destinação inadequada.
“Continuamos enterrando material que poderia agregar valor, poderia gerar riqueza para o país e movimentar a economia local das comunidades onde as cooperativas estão”, diz o presidente da Coopercaps.
A gestão adequada dos resíduos também tem potencial de reduzir as emissões de gases de efeito estufa. É possível, por exemplo, abater emissões na atmosfera ao recuperar os gases liberados nos aterros sanitários ou evitar sua geração pela compostagem de resíduos orgânicos.
O relatório da Abrelpe estima que o atendimento das metas do Planares evitariam a emissão de mais de 30 milhões de toneladas de carbono equivalente.
Ao mesmo tempo, especialistas defendem que solucionar o problema do lixo requer atuar em outras frentes, como o ecodesign. “A gente precisa repensar a indústria, as formas de consumo. Na economia circular, a reciclagem é a última etapa, quando você reduziu”, diz Maíra Pereira, da Ambipar Environment.
“A reciclagem tem um limite operacional, ninguém vai conseguir reciclar 100%. Não só porque o material tem um ciclo – por exemplo, o papel não pode mais ser reciclado depois de um certo momento –, como por conta desses vários gargalos. A gente não pode apostar todas as fichas nisso”, afirma Ricardo Lopes Garcia, presidente do conselho gestor do Instituto Giro.
Para Garcia, também é preciso haver uma mudança de hábitos de consumo e na separação dos materiais, mas que não vai acontecer de um dia para o outro. “Depende de educação, de conscientização, de facilitar que a pessoa leve o lixo até um determinado local – não adianta colocar um ponto de entrega voluntária se não der algum tipo de incentivo. Na economia circular, o consumidor é o nosso elo mais frágil”, diz.
Ele considera que as iniciativas voltadas a gerar créditos para os consumidores no país ainda são incipientes e pontuais, o que dificulta avaliar seu resultado efetivo. Ainda assim, é otimista em relação aos avanços feitos desde a década passada: “Os números ainda são uma incógnita, não temos um levantamento efetivo (do porcentual reciclado). Mas de 2010 para cá a evolução foi gigantesca a olhos vistos”.
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