Jardim de chuva e parque drenante: como cidades se inspiram na natureza para evitar desastres

Ações preventivas mimetizam o próprio meio ambiente e ajudam a tornar ambientes urbanos menos vulneráveis às mudanças climáticas

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Foto do author Gonçalo Junior
Atualização:

Diante da catástrofe ambiental causada pelas chuvas no Rio Grande do Sul e da ocorrência cada vez mais comum de eventos climáticos extremos, como alertam cientistas, o que as cidades podem fazer para prevenir ou minimizar efeitos desse tipo de tragédia? Algumas respostas podem estar no próprio meio ambiente.

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As soluções baseadas na natureza (SbN) são projetos de bioengenharia que buscam enfrentar desafios socioambientais usando princípios e processos inspirados nos ecossistemas naturais. Projetos como jardins de chuva, parques lineares e restauração de encostas são ações preventivas que mimetizam a natureza e ajudam a tornar as cidades menos vulneráveis.

Mas é preciso destacar o verbo minimizar no primeiro parágrafo. Essas soluções procuram deixar as cidades mais resilientes, mas não impedem os eventos climáticos extremos - que se tornarão mais frequentes e intensos com o aquecimento global.

Os alagados construídos como solução ambiental no parque orla de Piratininga, cidade de Niterói no Estado do Rio de Janeiro.  Foto: Pedro Kirilos/Estadão

“As cidades foram ocupadas de maneira desordenada, sem respeito às bacias hidrográficas. As soluções baseadas na natureza podem atuar nesse cenário, mas a filosofia é trazer uma mudança de mentalidade para evitar que haja o problema”, diz Fábio Lofrano, professor de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da USP.

“Mesmo diante de condições meteorológicas amenas, as SbN seguem provendo múltiplos benefícios. O plantio de corredores verdes para reduzir impactos do calor extremo provê uma série de outros benefícios, seja para a biodiversidade, seja para o bem-estar e a saúde da população”, diz Henrique Evers, gerente de Desenvolvimento Urbano do instituto de pesquisa WRI Brasil.

Uma dessas soluções são os jardins de chuva ou sistemas de biorretenção. Como o próprio nome indica, são espaços instalados nas ruas para absorver parte das chuvas, diminuindo impactos dos grandes volumes. A água que costuma se acumular no asfalto – o escoamento superficial - permeia o solo e segue para uma rede de drenagem subterrânea. É como se fosse um reservatório para o excesso de água.

Considerada uma tecnologia simples e de fácil manutenção, os jardins podem reduzir o volume de água quando implementados em grande número. Isso contribui para a redução das inundações.

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Segundo o Observatório de Inovação para Cidades Sustentáveis (OICS), plataforma virtual de mapeamento e divulgação de soluções urbanas inovadoras, os jardins podem absorver até 30% mais água pluvial do que um gramado.

Além disso, a vegetação nativa no jardim, adequada para cada microclima, contribui para a filtragem das águas pluviais contaminadas e ajuda a entregar uma água mais limpa para os rios e córregos.

Para cumprir todas essas funções, as áreas têm solo artificialmente modificado, com acréscimo de uma camada mais porosa de brita. Nesse contexto, têm o potencial de aumentar a biodiversidade e melhorar a qualidade ambiental.

Os jardins já fazem parte dos cenários urbanos. Só em São Paulo, há 337 estruturas desse tipo – a grande maioria na região central. Luiz Jamil Akel, assessor da Secretaria Adjunta das Subprefeituras, afirma que os jardins são construídos conforme o nível de risco de enchentes em cada região mapeada. “É uma política pública presente nas 32 subprefeituras”.

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Pesquisadores alertam que os jardins de chuva, assim como outras soluções, são específicos para cada contexto e precisam estar integrados a outras medidas. “Soluções pontuais poderão, na melhor das hipóteses, resolver problemas pontuais. Um jardim de chuva pode ajudar uma cidade a reduzir alagamentos, mas lidar com eventos extremos por meio de SbN envolve olhar muito mais sistêmico para a paisagem”, diz Evers.

“Não adianta ter apenas um jardim de chuva, mas precisamos começar com esse primeiro”, acrescenta a pesquisadora Maria Cristina Santana Pereira, doutora e mestra em Ciências, Engenheira Ambiental pela Escola Politécnica da USP.

Soluções podem ser feitas dentro dos condomínios

Apontados pela OICS como “os melhores exemplos de SbN”, os parques lineares também já são comuns. Essas áreas são destacadas pelos pesquisadores, pois agregam a infraestrutura natural verde e azul (reservas naturais e sistemas de águas) à infraestrutura cinza (sistemas de drenagem convencionais) no mesmo espaço. É uma intervenção urbanística associada à rede hídrica.

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Além do interesse ecológico e paisagístico, nos parques lineares coexistem distintas funções: gestão das águas, proteção da biodiversidade, recreação, cultura, educação, turismo e desenvolvimento econômico. A cidade de São Paulo conta com 24 parques lineares e outro em implantação (Linear Córrego do Bispo).

Em Belo Horizonte (MG), o parque Nossa Senhora da Piedade está inserido na macrobacia do Onça, que possui 64 córregos e 280 nascentes. O parque inaugurou o Programa de Recuperação Ambiental da capital mineira, dedicado à despoluição de córregos a céu aberto.

É uma área de aproximadamente 60 mil m² com foco na preservação ambiental e nas necessidades de lazer da população local. A implementação teve como premissas a construção de três parques lineares onde as áreas de preservação permanente (APPs) foram recuperadas e a qualidade hídrica, restaurada.

O foco das soluções baseadas na natureza não é apenas a gestão pública, mas também a própria comunidade. Maria Cristina explica que sistemas de biorretenção têm escalas diferentes de implementação, para um lote, rua ou bairro, por exemplo.

Isso significa que condomínios ou áreas privadas podem instalar seu próprio jardim de chuva. “Isso vai compor uma malha na cidade, com a contribuição de cada célula de biorretenção. A expansão provoca mudança na paisagem e começamos a pensar numa estrutura verde”, diz.

Nesse contexto, Lofrano destaca a importância da escuta dos saberes tradicionais, como das comunidades indígenas e quilombolas. “Ela detêm o conhecimento sobre espécies locais, por exemplo. É uma oportunidade para a academia ouvir e aprender.”

Jardim de chuva como solução para conter enchentes em rua na região do Jabaquara, zona sul de São Paulo.  Foto: Taba Benedicto/Estadão

Conceito ainda é raridade na gestão das cidades

Para a maioria dos municípios, as SbN ainda são um conceito novo, aponta Maria Cristina Santana Pereira. “Ainda não foram inseridas em programas de políticas públicas na maior parte das cidades”. Para Evers, o “modelo tem se disseminado com certa velocidade”.

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Maria Cristina, Lofrano, ao lado professor André Marguti e dos pesquisadores Thais Fujita e Thiago Osawa, trabalham para mudar esse cenário, aproximando o mundo científico da sociedade, com o Grupo de Interação à Pesquisa em Soluções baseadas na Natureza (GIP-SbN). Formado por alunos de pós-graduação e professores de Engenharia da USP, o grupo busca disseminar a produção de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico em SbN.

Algumas cidades já tiraram os planos do papel ao criar. A prefeitura de Campinas se debruça sobre o tema desde 2016, com criação dos Planos Municipais do Verde e de Recursos Hídricos. No ano passado, na revisão desses Planos, foi desenvolvida uma estratégia para a implantação de redes integradas de soluções baseadas na natureza em parceira com a WRI.

Hoje, a cidade possui 23 passagens de fauna aéreas e subterrâneas e vai implantar 49 parques lineares, de acordo com a prefeitura. Um dos locais já implantados é o Parque Linear do Piçarrão Trecho 8, na região do Parque Industrial. O poder municipal promete lançar no dia 26 o Plano Municipal de Mudanças Climáticas, que será gerido por um comitê municipal, criado em fevereiro deste ano..

Outro município com programas consistentes é Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. A cidade também criou uma pasta específica que cuida da política de prevenção, adaptação e mitigação de danos relacionados às mudanças climáticas.

As ações da pasta vão desde restaurar ecossistemas degradados, com a contenção das encostas, criar áreas verdes urbanas à gestão sustentável da água e promoção da biodiversidade.

O projeto de maior relevância é o Parque Orla Piratininga (POP), que recebeu R$ 100 milhões para se tornar o maior do País em soluções baseadas na natureza do País, conforme a prefeitura. Com inauguração oficial prevista para o 2º semestre, o projeto envolve a criação de um parque linear na margem da Lagoa de Piratininga. No total, o POP tem 680 mil m², 8 píeres e 17 praças.

No local, os jardins filtrantes, alagados construídos ou wetlands retiram impurezas das águas pluviais e das três principais bacias hidrográficas que desaguam na lagoa. É outra solução baseada na natureza.

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Nesse sistema, as plantas macrófitas absorvem a matéria orgânica para alimentar as raízes, além de criar um ambiente propício para bactérias que “quebram” partículas poluentes. Não há aplicação de agentes químicos artificiais.

Essas ações, que fazem parte do Plano de Ação Climática, valeram reconhecimentos internacionais, como a premiação no Latam Smart City Awards 2022, como um dos três melhores projetos da América Latina e Caribe dedicados à sustentabilidade ambiental.

A priorização da questão ambiental ganhou impulso após a tragédia do Morro do Bumba, em 2010. Quarenta e oito pessoas morreram após um deslizamento de terra. “Desde 2013, estamos investindo na resiliência da cidade em relação às mudanças climáticas”, diz o prefeito Axel Grael (PDT), também vice-presidente da FNP (Frente Nacional de Prefeitos) e presidente da comissão de Cidades Atingidas e Sujeitas a Desastres (Casd).

Da esquerda para direita: Thaís Fujita, André Marguti, Thiago Osawa, Fabio Lofrano e Maria Cristina Pereira (cadeira), pesquisadores da USP que estudam soluções urbanas inspiradas na natureza. Foto: Werther Santana/Estadão

Outras soluções baseadas na natureza

O Observatório de Inovação para Cidades Sustentáveis aponta outras soluções baseadas na natureza:

Telhado verde

O telhado verde é uma cobertura de vegetação sobre telhados, coberturas ou lajes. É empregada mais comumente para garantir conforto térmico nas edificações e transformar superfícies a princípio impermeáveis em áreas capazes de reter, filtrar e reaproveitar as águas pluviais, criando um sistema mais sustentável. Além disso, trata-se de medida cada vez mais popular para introduzir mais vegetação em áreas densamente povoadas.

Praças úmidas

Devido à herança arquitetônica e cultural portuguesa, espanhola e italiana, há no Brasil espaços amplos e vazios – “praças secas” – nas áreas centrais das cidades mais antigas. Atualmente, é consenso que elas são mais adequadas a países europeus.

No Brasil, onde predomina o clima tropical, são mais benéficas as “praças úmidas” ou “praças jardins”, espaços onde a vegetação e a permeabilidade do solo são priorizadas. São espaços de solo permeável que contribuem com a infiltração e o lento escoamento das águas das chuvas.

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