Primeiro dia
Fogo e fumaça pela Transpantaneira
A cidade de Cuiabá estava encoberta por uma densa nuvem de fumaça cinza. Logo no desembarque no aeroporto, no fim da manhã da quinta-feira de começo de setembro, o odor intenso das queimadas na cidade aumentou nossa ansiedade de chegar ao Pantanal, ainda a quilômetros dali, para registrar a série de incêndios que devastava o bioma.
Após reuniões sobre o drama ambiental, o jornal nos orientou a relatar em campo a situação nas zonas atingidas pelo fogo, entender o impacto dos incêndios e a registrar o desafio enfrentado por animais e pessoas numa terra em chamas.
Levamos um estoque de máscaras anticovid-19 e precisávamos nos adaptar a elas sob temperaturas que passavam dos 40ºC. Com as carteiras de motorista em dia, alugamos um carro no aeroporto de Cuiabá e dali seguimos pela MT-060 direto para Poconé, a 110 quilômetros. Antes mesmo de chegar à cidade pantaneira, vimos sinais das queimadas na vegetação das margens da estrada. Da cidade, iríamos percorrer os 145 quilômetros de terra e cascalho da Rodovia Transpantaneira até o coração do Pantanal.
Por volta de 13 horas, chegamos ao centro de Poconé. Ali, fizemos uma parada de 15 minutos num restaurante. Era tempo suficiente apenas para um rápido almoço e conversa com as primeiras fontes que retornavam ligações e passavam informações pelo WhatsApp e por e-mail sobre áreas mais críticas do incêndio. A gasolina do carro parecia suficiente.
No início da Transpantaneira, tivemos o primeiro contato com um Brasil que produz e atrai milhares de turistas todos os anos, mas que se viu diante de uma catástrofe. O Pantanal era fumaça densa e labaredas de fogo que, segundo estimativas, atingiam 25 metros.
Paramos o carro no KM 17. Ali funciona um Posto de Atendimento Emergencial a Animais Silvestres, mantido pelo governo do Estado.Um funcionário separava frutas para alimentar animais salvos do fogo e um bombeiro reclamava que não conseguia contato via rádio com equipes de campo. Um filhote de cervo e uma maritaca recebiam cuidados.
Um agente nos informou que o ponto mais crítico das queimadas era dentro de uma fazenda que ladeia o Parque Estadual Encontro das Águas, a 70 quilômetros do posto. Pisamos no acelerador e continuamos a viagem. A reserva abrigava aproximadamente 80 onças na estimativa de biólogos da região.
No Pantanal, tudo se apresenta em grandes proporções. A chegada à fazenda tomada por focos de incêndio deu uma nova dimensão ao desafio à frente. Até a sede da propriedade eram mais 30 quilômetros de estrada.
Lá, uma meia dúzia de bombeiros tentava evitar que labaredas vencessem um pequeno vão de terra batida e ganhasse o terreno do parque. Dida fez os primeiros registros do Pantanal em chamas.
A noite já havia caído quando regressamos à Transpantaneira. Era impossível prever o tempo de viagem até Porto Jofre, na extremidade final da rodovia. A estrada não é boa, tem buracos e pedregulhos. As mais de cem pontes de madeira não oferecem segurança. Ora o carro passa inclinado à direita, ora à esquerda. Mais à frente, um buraco na estrutura nos exigia colocar o pneu rente à beirada oposta.
A estrutura de uma ponte havia sido consumida pelo fogo e não havia qualquer aviso. Com prudência, pegamos o desvio. Dida dirigiu a maior parte do caminho e seguiu à risca a orientação de um funcionário do governo: evitar pontes sempre que houver um desvio debaixo dela.
Após desvios e rotas por dentro de fazendas em busca de histórias, a gasolina que parecia suficiente não nos permitiria chegar a Porto Jofre. Uma pane seca no meio do nada poderia nos render um problema grave. É que em alguns trechos da Transpantaneira o fogo parecia tomar a estrada. Uma das sessões de fotos feitas por Dida com drone e em cima do carro precisou ser interrompida. O lugar havia ficado quente demais e decidimos seguir. As condições indicavam que, caso o motor parasse, um socorro seria bem difícil.
Com pouca gasolina, encontramos uma pousada que virou base para ONGs e voluntários que atuam na proteção animal. Além de repassar informações, o pessoal ali nos ofereceu dois litros de gasolina que possivelmente impediram que ficássemos cercados pelo fogo. Dida usou a habilidade para transferir o combustível de um tonel para o nosso tanque com uma mangueira.
Cansados e sem se alimentar por horas, chegamos a Porto Jofre a uma da manhã. Começamos a bater nas portas e a tocar campainhas de pousadas. Nada. Por sorte, encontramos um morador que, por acaso, havia se deslocado para um ponto com acesso à internet. Ele se dispôs a guiar-nos até onde poderia haver algum alojamento.
Todos os estabelecimentos, porém, estavam fechados. A covid-19 suspendeu o fluxo de visitantes que, nesta época do ano, coloca as taxas de ocupação em algo entre 80% e 100%.
Entramos no terreno de uma pousada, na beira do Rio Cuiabá. As acomodações eram espalhadas, como pequenas casas, e não tínhamos ideia em qual delas os funcionários poderiam estar. Estacionamos e avançamos a pé no rumo de uma piscina. Ali havia a varanda de um restaurante, com duas redes. Virou ponto de pernoite e base.
Eram 2 horas da madrugada. Desde às 14 horas do dia seguinte não falamos mais com o jornal. Agora a conexão estava restabelecida. Antes de ler dezenas de pedidos de retornos, mandei logo uma mensagem: “Oi, gente. Desculpe o sumiço. Acabamos de encontrar um lugar para dormir em Porto Jofre. Ainda bem que a porteira de uma pousada estava com a trava aberta e tinha uma senha de Wi-Fi escrita numa placa pendurada na varanda onde encontramos redes”.
Segundo dia
Cara a cara com a onça
Quando ela for atingida, ninguém faz nenhum barulho, combinado?
Pela manhã da sexta-feira, tínhamos que dar alguma satisfação aos gerentes da pousada. Dávamos a repreensão como certa, mas, para a nossa surpresa, contamos com a total compreensão deles pela invasão. Além de informações preciosas sobre a dinâmica do bioma pantaneiro, ganhamos orientação logística.
Contamos sobre a gasolina e nos ofereceram um desconto. Porto Jofre não tem posto de combustível e tivemos que negociar com quem tinha reservatórios. Na pousada, cobraram R$ 10 pelo litro. Moradores pediam até R$ 12.
Até ali, não tínhamos um material razoável para enviar ao jornal. Havíamos gasto um dia só para a viagem. Achei melhor depositar no bolso da camisa um terço que ganhei do meu irmão e que representa muito pra mim. Não queria que nada desse errado.
Hora de rascunhar os primeiros textos, checar os vídeos e imagens produzidas e traçar a estratégia do dia. Estávamos perto de uma parte acessível por rios do Parque Estadual Encontro das Águas e decidimos que o melhor a fazer era ir até lá.
Escute o podcast Estadão Notícias sobre os bastidores da reportagem no Pantanal
Acontece que as pousadas, sem turismo, têm equipes reduzidas. O pessoal que ficou atendia pescadores e moradores de regiões próximas que costumam vir em finais de semana ao Pantanal. Uma chance de sair de casa, apesar da crise sanitária.
Não era fácil conseguir alguém para a empreitada. Depois de muita procura, negociamos um barco. Faltava o "piloteiro". E não poderia ser qualquer um. A fumaça turva a visão no caminho, a fuligem não deixa que os olhos fiquem abertos por muito tempo.
Funcionários da base em que estávamos deram a dica de procurar pelo Cabelo, a alguns quilômetros dali. Nascido em Assunção, Paraguai, Vandir García tinha o dia livre e aceitou o serviço. Assim que chegamos ao píer da pousada, recebemos a informação de que uma onça ferida havia sido avistada no Rio Corixo Negro, nas cercanias do parque. O piloteiro disse que nos colocaria diante dela em 40 minutos.
O relógio marcava 11h19 quando ele ligou o motor. No caminho, encontramos a embarcação de voluntários que se dedicam ao resgate de animais fazendo o caminho de volta. Era o mesmo grupo que havia nos cedido os dois litros de gasolina na véspera. Pensamos: bom que a onça foi resgatada, mas perdemos a notícia.
Quando o barco passou mais perto vimos que a jaula estava vazia. Cabelo suspeitou que iriam trocar o bote para não correrem o risco de o assoalho se prender na parte mais rasa onde estaria a onça. Depois, saberíamos que eles ainda nem tinham a localização do animal. O rio era largo, não conseguimos nos comunicar. Seguimos a toda em busca da onça ferida.
Dentro do tempo previsto por Cabelo, chegamos à margem em que estava o felino. O animal conhecido pela ferocidade e pela força estava prostrado. Com a nossa aproximação, esboçou se afastar, mas as patas não suportavam o seu peso. Estavam em carne viva. Dida segurou o obturador da câmera e registrou todos os movimentos do felino.
Precisávamos esperar pelos veterinários voluntários. A onça podia desaparecer de vista. Quase uma hora depois, eles nos encontraram e a operação de resgate começou.
A equipe era liderada por uma jovem de 20 anos. Sentada na proa do barco, Eduarda Amaral, agente de turismo do Pantanal, guiava o bote, que finalmente estacionou perto da onça. "Quando ela for atingida pelo tranquilizante, ninguém faz nenhum barulho, combinado?", disse Eduarda. Fizemos tudo o que a menina mandou.
Ela é de Cuiabá, mas vive e trabalha no Pantanal. Montou um projeto que reúne voluntários de várias partes do País para atuar no combate às chamas e na proteção da fauna. Nas nossas incursões, encontramos várias vezes com Eduarda, que estava sempre com um semblante sério liderando reuniões tarde da noite, pressionando funcionários do Estado e direcionando o barco nos rios.
"A pandemia de certa forma acabou ajudando. Como todos os tours foram cancelados ou reagendados para 2021, a gente acabou tendo mais tempo para fazer alguma coisa", disse, na base montada na pousada do empresário João Paulo, em Porto Jofre.
O trabalho para tranquilizar a onça é complexo. Uma investida mal sucedida podia fazer com que o bicho entrasse no rio e morresse afogado dentro de dez minutos, tempo para a medicação fazer efeito. O veterinário Jorge Salomão se arriscou pelo barranco, por trás da onça, que esboçou uma defesa.
Depois de mais de uma hora de observações e tentativas de aproximação, Salomão finalmente conseguiu acertar uma seta de zarabatana no animal. O sedativo atingiu a coxa direito do felino, que ainda conseguiu remover a injeção com a boca. A medicação, porém, já havia sido introduzida. Em dez minutos, o animal deitou.
Não se podia perder tempo. Era preciso checar se a onça realmente estava fora de ação e seguir com os procedimentos para colocá-la numa jaula e levá-la para os primeiros socorros. Foram quatro homens fazendo força para levantar o bicho do chão.
Voltamos à base e, com dificuldades de conexão, conseguimos transmitir as imagens para o jornal. Trabalhamos no chão da varanda onde pescadores animadamente bebiam e fumavam ao som de clássicos sertanejos.
Os biólogos conseguiram um helicóptero da Marinha para levar a onça a um centro de tratamento da Universidade Federal de Mato Grosso. O animal sobreviveu. A foto e a história estamparam o portal do Estadão no começo da tarde de sábado e a capa da edição impressa de domingo. Pela primeira vez em dois dias, pudemos tomar um bom banho e jantar. A noite, porém, seria de muito cheiro de cinza e mormaço.
Terceiro dia
“Foi crime”
No sábado, terceiro dia de viagem, fomos atrás de histórias de velhos pantaneiros.
Conhecemos o produtor rural Jamil Costa, de 71 anos, dono de um rebanho de 2.500 cabeças. Na conversa, ele chorou ao relatar que, dias antes, ficou cercado pelo fogo quando tentava salvar parte do gado desprendido da boiada numa tentava transferência dos animais para outra área. A relação dele com o Pantanal é intensa. À revelia dos filhos, insiste em manter a criação bovina porque era assim que seu pai e seu avô faziam.
Jamil perdeu 90% de seu pasto para o fogo e enfrentava grave problema para alimentar o rebanho. O produtor foi contundente. Ele disse que o incêndio neste ano no Pantanal foi “criminoso” e responsabilizou fazendeiros que chegaram nos últimos anos. Na avaliação de Jamil, os novos não entendem as características da região. Muitos abandonam as propriedades, deixando sedimentos acumularem nos pastos, facilitando a propagação do fogo.
Alguns dias depois, a operação Matáá, da Polícia Federal, em Mato Grosso do Sul, estado vizinho que abriga uma parte do bioma, divulgou que 25 mil hectares de área de preservação em Corumbá tinham sido queimados de forma proposital. Os criminosos tinham interesse em aumentar pastagens. Oito mandados de busca e apreensão foram expedidos.
Especialistas ouvidos pela reportagem avaliaram que a série de queimadas que destrói o Pantanal desde julho é resultado de diversos fatores. O crime é um deles. Além dos incêndios propositais, o bioma enfrenta um desequilíbrio hídrico e climático provocado por desmatamentos ambientais nas cabeceiras e formadores de rios de outras regiões do País, como o Cerrado e a Amazônia. Destes dois biomas nascem os cursos que abastecem o ecossistema pantaneiro. Vale observar ainda que o nível de chuvas neste ano em Mato Grosso foi 40% menor que no ano passado.
A entrevista com Jamil foi feita na hora do almoço, exatamente quando ele voltava em casa. Tinha ido buscar comida para os funcionários que combatiam uma queimada na fazenda para onde a boiada tinha sido transferida. Começou a comer sem mastigar e desculpou-se pela pressa. O pasto ardia em chamas.
Arley Costa, filha do produtor rural, nos presenteou com duas marmitas. Ela gerenciava uma outra pousada na região. Depois, seguimos de carro para o local onde o seu pai estava. Nosso interesse era registrar Jamil trabalhando para salvar o gado. Contudo, erramos o caminho.
Quando recuperamos a rota, nos vimos diante de uma história que precisávamos registrar. Biólogos de uma ONG distribuíam frutas em ilhas de alimentação para bichos que não morreram queimados. Eles disseram que nos acompanhariam até um local onde existiam animais mortos.
Jacarés, cobras e tatus estão mortos. Guiado pelos biólogos, Dida deitou sobre as cinzas para fotografar os animais. Pelas condições em que morreram, os jacarés tinham se guiado por instinto para uma pequena área de vegetação onde poderia haver umidade, disseram os estudiosos. Mas a água estava coberta por matéria orgânica incinerada. Um dos jacarés que encontramos estava virado de ponta cabeça. Para os biólogos, era sinal de que o réptil morreu se debatendo no fogo. Se a agilidade de onças e jacarés não evitou que muitos deles se ferissem ou morressem, o que pensar do fim cruel do jabuti que encontramos queimado?
Para além das imagens, a história dos biólogos que tentavam salvar os animais dizia muito. Descobrimos voluntários como Karen Domingo, que dedica os dias livres ao trabalho de proteção à fauna pantaneira. A distribuição de alimentos em pontos estratégicos é fundamental para a sobrevivência de animais. O fogo consumiu o que eles tinham de comer.
O professor Luiz Solino era outro exemplo de entrega. O mestrado dele em Biologia foi feito em universidade pública e teve o Pantanal como objeto dos estudos. Para ele, o trabalho voluntário era uma forma de retribuir os custos gerados à sociedade em sua especialização.
No Pantanal, formou-se uma rede de solidariedade para salvar os animais das queimadas. Biólogos, veterinários, donos de pousadas, proprietários rurais, ribeirinhos e bombeiros compõem uma ofensiva em defesa do bioma.
Integrantes da rede e autoridades de Mato Grosso avaliaram que o efetivo enviado pelo governo federal era insuficiente diante da expansão dos incêndios. Por isso, o jornal procurou os ministérios do Meio Ambiente e da Defesa para comentar sobre a sua atuação. Em nota, a Defesa informou que o governo federal, por meio das Forças Armadas, atuava “decisivamente” e “sem poupar esforços” no Pantanal. A nota destacou que a pasta disponibilizou helicópteros para transportar as onças resgatadas. “Em 40 dias de Operação, estão sendo empregadas 14 aeronaves das Forças Singulares, como os helicópteros UH-12, UH-15, HM-1 e H-60, além dos aviões C-130, C-98 e C-105, e que contabilizam cerca de 308 horas de voo”, ressaltou o comunicado.
Em outro trecho da nota, a pasta disse que deslocou ainda 40 viaturas e duas embarcações utilizadas diariamente no transporte de brigadistas e no despejo de água e um efetivo militar e servidores ambientais para a região. “Em média, estão engajados nas atividades 200 militares e 230 agentes de órgãos como Corpo de Bombeiros Militar de MT e MS, Secretaria de Estado de Segurança Pública, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)”, informou.O governo de Mato Grosso, por sua vez, esclareceu que mantinha 1.300 homens do Corpo de Bombeiros na parceria com os voluntários.
Ao percorrer estradas e fazendas, a equipe do jornal se deparou, ao longo de cinco dias, com dois dos 200 militares que o governo diz ter enviado. Eles estavam a bordo de uma vitória dos Bombeiros ajudando a conter o fogo que avançava sobre uma ponte. Vale uma observação: o Pantanal é uma área de 150 mil quilômetros quadrados só no Brasil, o que corresponde a quase 2% do território nacional.
Outros números despontaram. Até ali, o bioma tinha perdido 12% de sua cobertura natural. Esse número poderia ser maior se não fosse a rede formada por entidades da sociedade civil e moradores.
No dia 18 de agosto, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, esteve em Mato Grosso, mas a visita não surtiu efeito rápido. No início desta semana, depois que o Estadão reforçou a cobertura na região, o governo anunciou que aumentaria os esforços no combate aos incêndios.
Para encontrar os animais mortos, foi preciso sair da estrada e seguir por um pântano seco. Passamos o resto da tarde à procura dos animais e esquecemos das marmitas. À noite, fomos para a pousada gerenciada pela filha de Jamil para pernoitar. Quando embarcou no carro da reportagem para mostrar os aposentos e a cozinha, ela encontrou as marmitas intocadas. A situação era um tanto ruim, pois parecia que tínhamos desdenhado da comida, o que absolutamente não era verdade. Nos demos conta que não tínhamos parado por nenhum momento.
Eu disse a ela que ali estava nosso jantar. Gentilmente, ela recolheu a comida e nos recebeu no restaurante da pousada. Tínhamos tomado apenas um rápido café da manhã e andado quilômetros sob um sol de 43ºC. O sabor do pintado frito compensou toda dificuldade.
Quarto dia
Um parque de onças destruído pelo fogo
Na manhã de domingo, as reportagens do Pantanal em chamas e do resgate da onça-pintada repercutiam na internet e ganhavam repercussão em Brasília, com declarações de ministros e outras autoridades. Como havíamos entrado pela madrugada trabalhando em textos e fotos, acordamos tarde, às 8 horas. O restante da manhã foi dedicado a rever algumas fontes que nos ajudaram e a buscar relatos de outras. Não queríamos perder qualquer história.
Tínhamos combinado com seu Jamil um novo encontro para o começo da tarde, quando ele começaria o manejo do gado. Precisava levar os bois para ainda mais longe do fogo. Fizemos os cálculos sobre o tempo que teríamos para colher imagens e informações e enviar o material a Brasília e São Paulo para que a edição do jornal de segunda-feira fosse preparada. Às três da tarde, o gado deveria estar reunido, e a partir daí teríamos as melhores imagens. O prazo era apertado, mas era o que tínhamos.
Partimos a toda em busca do fazendeiro, a 20 quilômetros de onde estávamos - pela mesma estrada esburacada e com pontes precárias. Tínhamos uma hora para garantir alguma foto e, depois, voltar tudo de novo até o sinal de internet. No local, um funcionário avisou que Jamil estava "dentro do mato" e que para chegar lá só a bordo de um trator.
O tempo passava e nenhum sinal do nosso personagem até que, perto do nosso limite, o trator pilotado por Jamil saiu por trás de uma mata fechada e veio "raspando" o chão para cortar o caminho do fogo.
No caminho em direção a porteira, o trator ficou a uma carreira de distância do nosso carro. No desespero, daria para alcançá-lo a pé. Quando desembarcamos para começar a corrida, o termômetro do carro marcava 46º C.
O mato chegava à altura dos joelhos. Impossível não pensar na possibilidade de ser surpreendido por uma cobra. Fizemos a foto com as canelas ilesas e pedimos desculpa pela pressa.
Voltamos depressa para a pousada. Depressa, enviamos as fotos do produtor rural para o jornal. Depois que o material foi entregue, a chefia pediu que fôssemos registrar a destruição no Parque Estadual Encontro das Águas. O fogo avançava numa área de grande incidência de onças-pintadas. Mais da metade do parque tinha sido destruído pelo fogo.
Por volta das três da tarde, começamos mais uma vez a procurar um barco para nos levar à área do parque. Àquela hora, os piloteiros experientes estavam na água, trabalhando com pescadores. Pedimos ajuda a ribeirinhos, mas os que sabiam nos guiar não tinham barcos. Os que tinham barcos não aceitavam cartão de crédito.
Voltamos, então, ao local onde arrendamos o barco que tinha nos levado até a onça-pintada na sexta-feira. O responsável pela embarcação aumentou o preço, mas disponibilizou o piloto. A condição era que retornássemos antes do escurecer. Andar pelos rios à noite é arriscado.
Até o sol cair tínhamos duas horas para fazer o deslocamento, das quais quarenta minutos eram apenas para chegar ao parque.
Dida fez imagens aéreas. Nas áreas sobrevoadas, não havia mais focos de incêndio. Ele viu que a destruição reduziu boa parte do parque a um campo de cinza e tocos queimados. Após o limite de tempo estabelecido, retornamos à base para planejar o último dia de trabalho.
Quinto dia
Cuiabá está encoberta pela fumaça
O último dia da cobertura jornalística começou cedo. Na pousada, por volta das 5h30, entrevistamos um turista holandês que veio conhecer o Pantanal. Ele disse ter se encantado com o que viu e que só não voltaria por causa dos preços. Era o único estrangeiro visto na redondeza. Em outros tempos, eles seriam maioria entre os visitantes.
Depois nos preparamos para retornar a Cuiabá. O voo de volta para Brasília estava marcado para as 16 horas. Ainda era preciso finalizar algumas reportagens pelo caminho. Os problemas de conexão eram prenúncio de que o dia não seria fácil, como não foi.
A ideia era concluirmos os textos e fazer novas imagens na estrada. Mas precisávamos revezar no volante.
Na volta, os mais de 400 quilômetros percorridos em estradas de cascalhos começaram a fazer efeitos no carro. Prevíamos ter de justificar na locadora ao menos um pneu furado. Estaríamos no lucro se esse fosse o único prejuízo.
De repente, um barulho. Parecia a hora de ir buscar o pneu reserva no porta malas e suar litros para efetuar a troca sob o sol escaldante. Checamos os quatro e todos estavam cheios. Uma peça no fundo do veículo havia se soltado e se arrastado no chão. Nossos conhecimentos de mecânica não ajudaram a identificar a gravidade do defeito. Uma peça se desprendeu próximo às rodas traseiras. Após dobramos uma borracha, resolvemos continuar a viagem. O barulho cessou.
Paralelamente, mais uma vez tivemos de enfrentar o problema da falta de gasolina. Andamos por muito tempo com o tanque na reserva. Uma pane seca atrasaria o envio do material, faria com que perdêssemos o voo e deixaria a chefia preocupada com nosso paradeiro.
A maior parte dos 145 quilômetros da Transpantaneira, sob um calor de 43ºC, percorremos com o ar condicionado desligado. Sem um posto de gasolina à vista, o mais prudente foi parar num pequeno posto policial na beira da estrada e pedir ajuda.
O chefe do local, um coronel da reserva do Corpo de Bombeiros, disse que um soldado estava a caminho do posto para resolver alguns problemas da base e poderia buscar a gasolina, mas com uma condição. Deveríamos continuar o trabalho que o militar deixaria de fazer para nos prestar o favor.
Mãos às frutas e legumes. Enquanto o combustível não aparecia cortamos os alimentos e os distribuímos em cochos que seriam espalhados pela Transpantaneira para aliviar animais silvestres que não morreram no incêndio e estavam sem ter o que comer. Foi um bom negócio para a base, pois um cortador de alimentos foi substituído por dois voluntários – um repórter e um fotógrafo.
Improvisamos uma bomba e colocamos os quatro litros de gasolina no tanque. No posto da cidade de Poconé, enfim, completamos o reservatório. Era o suficiente para voltar a Cuiabá e tomar o voo para Brasília.
Chegamos em cima da hora ao aeroporto da capital mato-grossense, exaustos e sujos. Decolamos num céu ainda cinza. Um turbilhão de imagens começou a vir na memória - o desespero de bichos ferozes e frágeis, a vegetação estalando no fogo, a lama nas lagoas e rios, as denúncias de crimes contra o bioma. Sem a adrenalina e as dificuldades de uma viagem, bateu ainda mais forte a consciência das perdas. Mas veio também lembranças dotrabalho e da rede de solidariedade dos voluntários e moradores para defender uma das riquezas do país, da humanidade. O Pantanal luta para salvar o Pantanal.
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