O Brasil terá de equilibrar alguns pratos durante a Conferência do Clima das Nações Unidas (COP-28), em Dubai. Por um lado, a delegação do País defenderá que os países assumam compromissos mais ousados para garantir que alta da temperatura global não ultrapasse 1,5ºC na comparação com a metade do século 19. Por outro, não terá uma postura incisivamente refrataria ao uso de combustíveis fósseis, um dos assuntos pelos quais o governo foi mais cobrado durante a Cúpula de Belém, em agosto .
O embaixador André Corrêa do Lago, secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores, estará à frente de um time de negociadores climáticos do Itamaraty. Em entrevista ao Estadão, Lago defende que os países acelerem as substituições de combustíveis fósseis, mas admite limitações. “A realidade é que hoje não pode parar os (combustíveis) fósseis, porque no curto prazo, e no médio prazo, eles não são substituíveis na escala que seria necessário.”
Mirando a COP-30, que será realizada em Belém, o País buscará nesta conferência caminhos para viabilizar o financiamento e fazer com que os países, sobretudo aqueles em desenvolvimento, possam chegar em 2025 com mais condições de se adaptar à crise climática, que neste ano mostrou efeitos graves, como na estiagem seguida de queimadas na Amazônia e no ciclone no Sul.
Para isso, um dos instrumentos que serão propostos pelo Brasil prevê a remuneração direta de comunidades que preservem a floresta. O modelo, que terá como foco a captação de recursos em fundos soberanos dos países, será proposto a 80 nações com florestas tropicais.
“O Brasil tem planos muito grandes, mas também tem consciência de que precisa de mais recurso”, afirma Lago. Detalhes desse modelo serão apresentados na própria cúpula, que terá a participação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O embaixador, que trabalha com temas relacionados ao desenvolvimento sustentável desde 2001, minimiza o impacto das rusgas entre o Lula e o agronegócio na imagem do Brasil no exterior. Mas afirma que é preciso resgatar a reputação do setor.
“ A verdade é que o setor agropecuário brasileiro ficou com uma reputação muito afetada internacionalmente, a gente tem que se concentrar muito nesses progressos que têm que ser feitos no contexto do agronegócio. Mas o setor já está se mexendo muitíssimo.”
Leia os principais trechos da entrevista:
O Brasil colocou como meta ‘Missão 1,5ºC’ para garantir que os países se esforcem para manter a temperatura global abaixo disso. Que estratégias o País vai usar para ter adesão a essa proposta?
Negociamos dentro de vários grupos, e adiantamos para esses grupos que iríamos propor isso. Vamos tentar no G77 + China (grupo que reúne nações em desenvolvimento) de conseguir isso. Já temos muitos países que favorecem isso há mais tempo. Principalmente as pequenas ilhas dos países mais vulneráveis, todos têm consciência de que se passar de 1,5ºC alguns até podem desaparecer. É muito sério. A União Europeia também defende 1,5ºC. Vamos tentar avançar para um consenso, mas o importante é lembrar que não é uma ideia que sai da cartola. Esse 1,5ºC é o que o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU) confirmou como limite após o Acordo de Paris.
O G77 inclui países como a China, grande emissor de gases do efeito estufa. Como ter a adesão de países como esse?
Tem de ser um esforço racional. Não tem que ser meramente declaratório. Temos de assegurar que os países se comprometam com isso. É uma maneira de dizer: estamos numa emergência. Temos de acelerar meios de implementação, que são os recursos financeiros, mas também a ambição.
Na comunidade científica, fala-se que para alcançar o 1,5ºC é preciso acelerar o fim do uso de combustíveis fósseis. Qual a posição brasileira a respeito da eliminação do uso de combustíveis fósseis?
Aí entra um debate muito complexo, que não é necessariamente sobre o fim dos combustíveis fósseis. Tratamos de emissões, sejam elas de qualquer origem. Se os combustíveis fósseis puderem reduzir as suas emissões, será uma coisa que vai ajudar a aceleração (rumo à meta). Alguns países defendem que se declararmos que acabaremos com os combustíveis fósseis, isso vai desestimular o desenvolvimento de tecnologias que reduzam as emissões desses combustíveis. Se disser que vai tentar assegurar uma redução ou a eliminação das emissões dos fósseis, é diferente. O importante é conseguir esse equilíbrio, que como você sabe, é muito difícil. Há cálculos de que em torno de um bilhão de pessoas no mundo ainda não têm acesso à eletricidade. No Brasil, é menos de 1% da população sem acesso.
O senhor mencionou que é preciso posição equilibrada. O Brasil vai adotar esse meio do caminho?
O Brasil defende sempre que, seja para hidrogênio ou qualquer solução energética, o importante é que a fonte emita pouco, cada vez menos. E, se possível, seja uma emissão negativa. Se o CCS (tecnologia de captura e armazenamento de carbono), que está sendo desenvolvida para o petróleo, se tornar economicamente viável e convincentemente eficiente, os biocombustíveis no Brasil passam a ter emissão negativa. Ou seja, os biocombustíveis passam a ter função que se tem no reflorestamento, no qual absorve o carbono que já existe. As tecnologias que servem para uns também podem servir para outros e podem ser extremamente positivas pro combate à mudança do clima.
Mas temos visto que há urgência na questão climática. Não é arriscado depender da evolução dessas tecnologias?
A realidade é que hoje não pode parar os (combustíveis) fósseis, porque no curto e no médio prazo, eles não são substituíveis na escala que seria necessário. No entanto, temos de acelerar a substituição. A própria Arábia Saudita, por exemplo, já está se comprometendo que, em 2030, 50% da eletricidade será renovável. Há um esforço generalizado, mas precisamos acelerar. Tem várias soluções. Há 15 anos, ninguém no Brasil acreditaria nos números que temos hoje de (energia) solar e (energia) eólica. E aconteceu. Porque é economicamente viável e, por isso, acredito que temos de continuar explorando todas as direções possíveis, sobretudo para um país da escala e do tamanho da economia do Brasil. Não pode deixar de usar da melhor maneira possível todas as energias disponíveis. E da melhor maneira quer dizer da maneira mais sustentável possível.
Na Cúpula de Belém, houve desconforto entre Brasil e Colômbia na questão do petróleo (era debatido na época o plano da Petrobrás de explorar a Foz do Amazonas). Como o Brasil pretende negociar em bloco na COP, se ainda há arestas a serem aparadas entre os próprios países amazônicos?
Não podemos chamar de arestas. É uma questão de visão do futuro. Apostar em parar de explorar petróleo: esse debate ainda não está muito maduro. Há pouquíssimos países que têm potencial de produzir petróleo que estejam anunciando isso. Pode dar datas. Por exemplo: as petroleiras estão dizendo que serão carbon neutral em 2050. A própria Petrobras já disse. Há esforço muito grande nesse sentido de redução dos fósseis na matriz energética mundial. No entanto, qual é o ritmo ? Que países terão de parar antes? Porque há um movimento de que os países em desenvolvimento deveriam poder usar mais, porque não tiveram ainda tempo de se desenvolver. Esse debate ainda está muito no começo. É difícil assumir um compromisso de não usar alguma energia quando esse debate (não está maduro). Os Estados Unidos anunciaram novos investimentos na área de petróleo. O Reino Unido anunciou novos investimentos na área de petróleo. É um tema ainda muito candente, mas é importante que essa discussão ocorra, porque sabemos que praticamente 70% das emissões mundiais são causadas por fósseis.
Mesmo dentro do próprio governo há posições divergentes sobre a exploração do petróleo na Margem Equatorial do Amazonas. Como o Estado brasileiro vai se posicionar sobre isso?
Precisamos ter no Brasil ampla consulta, um debate sobre o tema. A decisão tem de ser de Estado. Ou seja, o que for decidido nesse governo terá consequências por décadas. Não acho que essa decisão precisa ser tomada agora. Na COP-28 a gente está ainda debatendo esse tema no Brasil. Quando conseguirmos combater o desmatamento. eficientemente as demais emissões passam a mudar de posição. Temos de ter um um trabalho muito sério sobre as demais emissões: de transportes, da agricultura, e várias outras na área industrial. O mundo tem de saber que o Brasil não está negando nenhum dos seus problemas. O Brasil está enfrentando esses problemas, tem suficiente conhecimento nas instituições para analisar quais são os caminhos que pode tomar.
Historicamente, o Brasil tem papel de mediador entre países ricos e pobres. Mas o presidente tem assumido fala dura, de cobrança sobre o financiamento pelas nações desenvolvidas. Como o Brasil atuará na COP?
O presidente pode cobrar, porque ele está fazendo a parte do Brasil. Não há só o combate ao desmatamento, mas um governo com o Plano de Transformação Ecológica (capitaneado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad). O governo inteiro está comprometido e incorporando a questão da mudança do clima no programa de governo. E há expectativa grande de que justamente os países que mais fazem sejam aqueles que mais cobrem. No caso dos recursos financeiros, não é que o presidente está tirando uma novidade. A promessa dos US$ 100 bilhões por ano (feita na Cúpula do Clima de Copenhague, em 2009) deveria ter começado em 2020. Estamos em 2023. Provavelmente este ano os países desenvolvidos dirão que chegaram aos US$ 100 bilhões. Mas é natural que haja expectativa de que o presidente, visto como um dos grandes líderes do Sul Global, também possa cobrar.
A agropecuária é estratégica para o Brasil, mas às vezes o setor critica o presidente, em outras ele critica o setor. Isso traz uma visão menos coesa sobre o compromisso sustentável do setor para a comunidade internacional?
Todos os setores do mundo têm algum desafio no combate à mudança do clima , o industrial, o agrícola, o de energia. Todo mundo tem de tomar certas medidas que provavelmente serão caras, desafiadoras. O importante é assegurar que tenha tempo para que as coisas aconteçam. O setor do agronegócio é simplesmente central para economia brasileira. O crescimento do Brasil deve muitíssimo a esse setor. E é um setor que também está encontrando muitíssimas soluções para reduzir emissões, porque é o setor brasileiro que mais exporta. É um setor que está muito consciente do que o mercado mundial está pedindo. É questão de ajuste de melhor entendimento. Mas, de modo geral, sinto que o agronegócio está plenamente consciente dos desafios e procurando soluções. É natural que busquem mais tempo para fazer aquilo que esteja eventualmente faltando. Mas há diálogo construtivo entre os dois (Lula e o setor) mesmo que de vez em quando tenha uma declaração menos simpática de um lado ou do outro. A realidade é que tanto o governo como o agronegócio querem exatamente a mesma coisa: que o setor crença, que o Brasil exporte mais, que seja referência mundial de sustentabilidade. A verdade é que o setor agropecuário brasileiro ficou com reputação muito afetada internacionalmente. Temos de concentrar nesses progressos que têm que ser feitos no contexto do agronegócio. Mas o setor já está se mexendo muitíssimo.
Como a diplomacia brasileira tem atuado para ajudar a vencer resistências na concretização do acordo com a União Europeia?
A melhor resposta é sempre a verdade. Há uma campanha de desinformação por um lado, dos interesses europeus que querem restringir as importações do Brasil. Mas também, por outro lado, há uma realidade no Brasil que queremos mudar, porque existem várias coisas que ainda não estão como deveriam estar. O mais importante nessa questão é que não há dúvida do desejo do governo de tornar o Brasil um símbolo da sustentabilidade. E não há dúvida do agronegócio de querer ser visto como sustentável. É, sobretudo, uma questão de mostrar resultados. Estou impressionado com diversas intervenções tecnológicas e de práticas que têm trazido resultados extremamente positivos, mas o que não podemos é deixar com que uma minoria do setor agrícola no Brasil, que não cumpre com os padrões que deveria cumprir, estrague a reputação da esmagadora maioria que cumpre com o padrão que o Brasil quer e que o transforma numa grande referência.
Houve aumento de queimadas na Amazônia e no Pantanal, o que motiva críticas. O que o ? Isso atrapalha o esforço do Brasil na tentativa de liderar os debates ambientais?
Em todas as negociações, tudo que se trata é daquilo resultado da ação humana. O que temos visto é que a Europa teve queimadas horrorosas, o Canadá, uma coisa espantosa, os Estados Unidos também, a Amazônia também. Várias dessas queimadas são provocadas por situações como o El Niño, que não é provocado pela ação humana. Uma coisa é, evidentemente, como o país reage a queimadas que normalmente não deveriam ocorrer. O que ocorreu no Canadá foi totalmente excepcional e a seca que na Amazônia também foi excepcional. Um incêndio florestal na Amazônia normalmente é raro, porque é uma floresta extremamente úmida. Não há dúvida que a mudança do clima provocada pelo homem piorou ainda mais a situação do El Niño, ou seja, as consequências foram acentuadas pela mudança do clima também no resto do mundo. Temos de ver até que ponto podemos lutar melhor, por exemplo, contra os incêndios. E trabalhar conjuntamente. Houve cooperação internacional nesse sentido, porque houve perplexidade diante de tantos incêndios no ano passado e neste ano no mundo. Como o bioma amazônico é maior do que a Índia inteira, controlar um território desse tamanho é um desafio imenso e acentua a necessidade de recursos, de tecnologia, de cooperação internacional.
Além dos fenômenos naturais, há incêndios criminosos. Como o mecanismo desenhado pelo Brasil para proteção de florestas pretende auxiliar a minimizar isso?
Um dos grandes desafios de conservação de floresta, de reflorestamento, é a permanência. Quanto tempo vai ficar em pé essa floresta? Precisa de mecanismos que impeçam que a floresta seja queimada, desmatada, por muitos e muitos anos. Isso é um papel importante que têm as comunidades na Amazônia e em vários dos biomas brasileiros, de ajudar a conservar as florestas. Por isso, merecem recursos. As florestas que temos hoje são habitadas há milênios por certos grupos, que convivem com a floresta sem ser uma ameaça a ela. Eles asseguraram que essas florestas se mantivessem até hoje. É importante remunerar esse serviço e assegurar que as comunidades locais tenham as condições de impedir que eventualmente haja desmatamento ou incêndios. Seria uma remuneração direta. O grande desafio é conseguir chegar direto nas pessoas nessas comunidades.
O Brasil reativou o Fundo Amazônia, mas muitas doações prometidas ainda não chegaram. Como o país vai trabalhar nesta COP para acelerar as doações?
O Fundo Amazônia é uma de várias formas que o Brasil reúne para conseguir recursos para alguns dos seus principais planos. Temos não só o Fundo Amazônia, que se aplica especificamente para a conservação de florestas. Temos a preparação, que está a caminho com o mercado de carbono, que poderá incluir projetos de restauração e reflorestamento. Haverá um plano ambicioso do BNDES, justamente de restauração, e também uma proposta ambiciosa do Brasil com relação a florestas. Numa visão mais global, identificamos 80 países florestais tropicais que poderiam trabalhar juntos. O grande desafio é justamente nos demais setores. Na medida em que combater o desmatamento, os demais setores serão o foco. Num plano bem definido, como o do Ministério da Fazenda, é importante saber como conseguiremos os recursos financeiros para essa transição. União Europeia e Estados Unidos têm imensos planos de transição ambiciosos, mas têm muitos recursos financeiros. O Brasil tem planos grandes, mas também consciência de que precisa de mais recurso. O governo reativou o Fundo Clima. O importante é mostrarmos ao mundo que temos os projetos e temos como receber os recursos.
O senhor mencionou o mecanismo de captação de recursos para preservação das florestas. Como será a arquitetura dessa proposta?
Seria um um fundo que buscaria captar recursos de fundos soberanos. Os fundos soberanos têm recursos gigantescos. (Essa proposta) Faz parte desse esforço de ter um leque de opções de como podem entrar os recursos. Neste caso, é um mecanismo que não usa carbono como medida, mas esse seria um fundo que usa hectare conservado. O Brasil está dando várias opções, porque o Brasil é muito diverso, e tem circunstâncias diferentes, dependendo da região. Portanto, nossa experiência pode ser útil para os demais países.
Os países desenvolvidos têm resistido muito na questão do financiamento. Há espaço para que essa proposta tenha adesão na COP?
Os recursos que vêm dos orçamentos dos países são complexos de se obter. O Estados Unidos, por exemplo, se comprometeram a dar US$ 500 milhões para o Fundo Amazônia, mas tem de ser aprovado pelo Congresso. É uma operação longa. Outros países também têm essa dificuldade. Outros países acham que tem que ser recursos privados para complementar os recursos oficiais. O que o Brasil mostra é que haverá um leque de opções para todas essas fontes possíveis. Temos uma proposta e queremos ouvir os demais países florestais para assegurar que a proposta fique sólida. Há países florestais tropicais que desmataram minimamente: eles têm um tipo de preocupação. Há aqueles que desmataram demais: outro tipo de preocupação.
Neste ano, teremos o primeiro balanço global (Global Stocktake) sobre o Acordo de Paris. O que o Brasil quer que esteja nesse documento?
Tem de ser um documento que acentue o que foi feito, que mostre de maneira clara o que falta e aponte caminhos para que isso possa ser contornado rapidamente. Tem de ser um documento realista, mas não pode ser apenas uma lista de insucessos. Por mais que todos estejamos frustrados pelo Acordo de Paris não ter dado mais, é importante dizer ao mundo tudo que aconteceu e o que não está sendo dito. E o quanto ainda dá para fazer nestes dois anos até (a Cúpula de) Belém. Para assegurar que, quando estivermos em Belém, os países apresentem as suas novas NDCs mais ambiciosas (para 2025, é previsto que as nações apresentem novas metas .climáticas, as NDCs).
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