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Por que tantos botos estão morrendo na Amazônia?

Pesquisadores monitoram local onde centenas de animais morreram no ano passado; 23 carcaças já foram encontradas em 2024

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Foto do author Juliana Domingos de Lima
Por Juliana Domingos de Lima
Atualização:

Pelo segundo ano consecutivo, o mês de setembro tem sido mortal para os botos e tucuxis do Lago Tefé, na região do Médio Solimões, no Amazonas.

Pesquisadora Miriam Marmontel pede assistência por rádio após encontrar filhote de tucuxi morto na beira do Lago Tefé, 18-09-2024 Foto: Jason Gulley/Divulgação

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Até agora, 23 espécimes - 19 botos-vermelhos (mais conhecidos como botos-rosa) e 4 tucuxis (botos-cinza) - foram encontrados mortos no local pela equipe do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), organização social vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia.

Segundo Miriam Marmontel, chefe do projeto de pesquisa em mamíferos aquáticos amazônicos do instituto, a maioria das mortes este ano está ligada à seca. O País sofre com a estiagem mais severa das últimas sete décadas, desde o início das medições federais, e a Floresta Amazônica tem sido especialmente afetado.

“O lago está extremamente raso, com o canal limitado a dois metros de profundidade e cerca de 200 metros de largura. Isso coloca botos, peixes-boi, jacarés e peixes em maior proximidade a pescadores e todo tipo de embarcação”, disse Miriam ao Estadão. “Já encontramos animais vítimas de emalhamento (captura acidental) em redes de pesca ou de encontro com embarcações”.

O Instituto Mamirauá tem monitorado o lago duas vezes ao dia nas últimas três semanas, coletando amostras, recolhendo carcaças e realizando necropsias em animais.

No ano passado, o instituto registrou um total de 330 botos mortos, o equivalente a 12% da população local desses animais. Foram 209 carcaças encontradas em Tefé e 122 em Coari, outro lago próximo.

Cientistas recolhem carcaças de botos, em emergência que deixou centenas de animais mortos Tefé em 2023 Foto: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá

“Estamos preparadas para intervir antes de chegar ao ponto crítico, possivelmente conduzindo os animais para fora da área mais problemática e isolando o local”, afirma Miriam.

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Em 2024, as mortes registradas até agora parecem não derivar do estresse térmico, mas ao baixo nível do lago. Apesar disso, ela não descarta que a mortandade do último ano se repita caso a temperatura da água siga elevada por três dias seguidos ou mais.

De acordo com a pesquisadora, a temperatura no lago tem variado diariamente entre 27ºC e 38ºC, a depender do nível de nebulosidade e de fumaça de queimadas.

Como os botos são mamíferos, com temperatura corporal semelhante à dos humanos, o calor acima de 36°C é prejudica a sua saúde.

Analista de conservação do WWF Brasil, Mariana Frias diz que a vazão da água no Lago Tefé fez o nível da água diminuir em ritmo acelerado por muitos dias. Agora a altura da água está estável, mas é aí que radiação e temperatura aumentam, criando “a fórmula completa para uma nova catástrofe”, segundo ela.

“Esse é o nosso medo. Estamos exatamente na mesma semana em que ocorreu a grande mortandade no ano passado. Nesse momento, está todo mundo mobilizado, prestando muita atenção, caso seja necessário fazer qualquer tipo de intervenção”, acrescenta ela.

Boto encontrado morto no lago Tefé em 24 de setembro de 2024 Foto: Daiana Guedes/Instituto Mamirauá

Segundo o Ministério do Meio Ambiente, Ibama e ICMBio, órgão responsável pelas unidades de conservação, enviaram equipes à região para avaliar a seca no Lago Tefé, constatando a necessidade de ação antecipada devido aos níveis alarmantes de profundidade e de temperatura da água.

Em 17 de setembro, o ICMBio instaurou a Emergência Fauna Aquática, com um posto de comando na região e ações de monitoramento diárias. O Ibama também afirma ter intensificado suas operações em Tefé para reduzir a captura ilegal de peixes-boi, que viam alvo mais fácil da captura e comercialização ilegais com o nível mais baixo do rio.

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Como o Estadão mostrou, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem sido alertado desde o início do ano para o risco de estiagem severa e escalada de incêndios em grande parte do Brasil. Sob pressão pela crise das queimadas em vários biomas, incluindo Pantanal e Amazônia,, o presidente repetiu seu discurso em defesa pauta climática na assembleia geral das Nações Unidas (ONU).

‘Cumulativo de ameaças’

As especialistas alertam que a mortandade de botos não é apenas má notícia para esses animais, que integram a lista vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês), mas para os ecossistemas onde vivem.

“No ano passado, ficou muito claro o papel de sentinela (dos botos), de serem os primeiros atingidos pelo calor e demonstrarem que algo muito errado acontecia no ambiente”, diz Miriam Marmontel.

Os botos estão presentes só na América do Sul e na Ásia, e vivem em alguns dos rios mais importantes do mundo, como Amazonas, Orinoco (Venezuela), Ganges (Índia) e Mekong (Sudeste Asiático).

Eles são responsáveis pelo sustento da vida selvagem e de centenas de milhões de pessoas em comunidades remotas e também em megacidades, além de irrigarem grandes extensões de terras agrícolas e abastecerem a indústria.

Sendo animais no topo de cadeia alimentar, botos predam as espécies mais vulneráveis e controlam as populações de peixes, além de serem muito sensíveis à saúde dos rios.

Mariana coordena a South American River Dolphin Initiative (Iniciativa Sul-Americana dos Golfinhos Fluviais, outro termo utilizado para designar as espécies de botos), articulação entre instituições e cientistas de diferentes países envolvidos em ações de conservação dos botos da América do Sul.

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Nas últimas três décadas em que pesquisadores da iniciativa vêm coletando dados nas bacias do continente, múltiplas ameaças foram identificadas.

Equipe do Instituto Mamirauá mede carcaça de boto adulto, morto em Tefé em 2023 Foto: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá

Elas vão da fragmentação das populações pela construção de barragens hidrelétricas, contaminação dos rios por agrotóxicos e mercúrio, à degradação causada pelo desmatamento, conflitos com humanos a efeitos da crise climática, que se intensificaram nos últimos anos.

“O que aconteceu ano passado não foi evento isolado. São ameaças cumulativas, de ampla escala em toda a Amazônia, que levam essas espécies a serem classificadas como em perigo de extinção“, destaca ela.

No Lago Tefé, Instituto Mamirauá e WWF estimam redução de 15% da população de botos de 2013 a 2023. A queda pode ser ainda maior, já que desconsidera mortes por captura acidental e conflito direto com pescadores.

Organizações criaram protocolo

Após a emergência ocorrida em 2023, um Protocolo de Conduta durante Evento de Mortandade Incomum de Cetáceos Amazônicos foi elaborado pelo Mamirauá, em colaboração com organizações não governamentais e institutos de pesquisa.

O documento, publicado este ano, estabelece diretrizes para as ações de monitoramento, resgate, tratamento e translocação dos botos do local de risco, além do processamento das carcaças, em um cenário no qual os animais apresentem “sinais clínicos de estresse severo, hipertermia e/ou choque” .

Com base nos procedimentos previamente descritos, as instituições monitoram os locais de risco para decidir a cada dia as ações cabíveis - nos piores casos, barrar a passagem dos animais para as zonas mais quentes ou retirá-los do lago.

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O Ministério do Meio Ambiente informa que um plano de ação para emergências que afetam os botos está em fase final de elaboração pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Aquáticos do ICMBio, em parceria com pesquisadores.

Quem encontrar botos ou peixes-bois encalhados, mortos ou com comportamento anormal pode entrar em contato com os canais do ministério pelos números: (92) 98438-7964, (91) 3284-5819 ou (71) 8192-1748.

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