As mudanças climáticas em curso podem provocar queda de até 20% na produção de biomassa de cana-de-açúcar no Brasil em apenas dez anos, com grande impacto na fabricação de etanol e na geração de energia renovável. A conclusão é de estudo feito por pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O trabalho é pioneiro no detalhamento de impactos negativos do aquecimento global na cultura da cana no País.
Nos últimos dias, o interior de São Paulo viu uma amostra dos extremos climáticos, com a destruição de lavouras pelas queimadas impulsionadas pelo tempo seca e quente. O número de focos de incêndio registrados em agosto no Estado foi o maior para qualquer mês nas cidades paulistas desde 1998, quando os registros começaram a ser computados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe.
Dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) indicam que a queda na produção já começou a ser sentida e pode se agravar rapidamente, caso não sejam adotadas ações para mitigar os impactos ambientais.
Os números mostram redução de 3,8% na safra de 2024/2025 em relação à anterior, em consequência dos baixos índices de chuva e das altas temperaturas registradas no Centro-Sul do País, onde se concentram 90% do cultivo de cana. Essa redução da produção resultará em queda de 4% na produção de etanol.
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Os cientistas já sabiam que, em geral, as fontes renováveis de energia são altamente vulneráveis às mudanças climáticas, mas acreditavam que eventual aumento de temperatura não teria impacto negativo na cultura da cana-de-açúcar -- um cultivo tropical bem adaptado ao clima quente.
No entanto, as projeções revelam uma alteração significativa no volume e na frequência das chuvas que produziria consequência grave no cultivo da cana. Além disso, o aumento das temperaturas pode extrapolar os limites aos quais a planta está adaptada; de 19ºC a 38ºC.
Parte do mestrado do engenheiro agrícola Gabriel Petrielli na Unicamp, o trabalho analisou o impacto das mudanças climáticas na produtividade da região que engloba os Estados de São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O estudo considerou também o impacto em uma potencial área de expansão do cultivo.
A análise combinou simulações de crescimento da cana-de-açúcar com dois modelos climáticos diferentes, um otimista e outro mais pessimista, ambos do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC, na sigla em inglês). Os cientistas também usaram dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
No cenário mais pessimista – que prevê redução de até 20% em dez anos – a queda nas receitas pode alcançar US$ 1,9 milhão por bilhão de litros de etanol ao ano, sóem créditos de descarbonização. Ou seja, os créditos recebidos pelas emissões de CO2 (um dos principais gases do efeito estufa) evitadas pelo uso do biocombustível em vez do combustível fóssil.
Mesmo no cenário mais otimista, em que as emissões de CO2 teriam de ser reduzidas, a produção de cana-de-açúcar recuaria 5%.
O Brasil é líder mundial na produção e no consumo de biocombustível. Segundo a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o País produziu 43 bilhões de litros de etanol e biodiesel em 2023. A biomassa de cana, por sua vez, responde por 16% da geração de energia do País.
O novo trabalho mostra que, até o fim do século, a queda na produção pode chegar a 26%.
“Se repassarmos o impacto dessa redução para a energia da biomassa de cana, teríamos redução de 40% do consumo da iluminação pública de todo o Brasil por ano”, afirmou Gabriel Petrielli, principal autor do estudo. “Precisamos reduzir emissões para evitar que esses cenários aconteçam e também pensar em planejamento de adaptação se esses cenários se concretizarem.”
Secretário executivo do Observatório do Clima, Márcio Astrini lembra que o Brasil é muito dependente do clima em setores cruciais da economia, como a agropecuária e a geração de energia.
“Os novos dados mostram como o Brasil é frágil e está mal preparado para as mudanças climáticas e como elas vão afetar esses setores”, afirma o ambientalista. “Mas o sofrimento não será igual para todo mundo. Quem tem dinheiro terá acesso a mais tecnologias de adaptação; outros não. A agricultura familiar será atingida em cheio.”
A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) já trabalha em adaptações possíveis para o cultivo de cana que poderiam mitigar as perdas. “São desafios que já são sentidos hoje no Cerrado”, aponta Santiago Cuadra, pesquisador da instituição.
“Diante desse cenário, já trabalhamos com alternativas para o setor, uma delas é a irrigação suplementar do cultivo, logo depois da rebrota da cana, que já está sendo usado. Mas temos de ter outras práticas, melhorar a eficiência do plantio, investir no programa de melhoramento genético, que nos traria exemplares mais tolerantes à seca”, afirma Cuadra.
“Temos de ter em nosso radar que vamos enfrentar um cenário de aumento das temperaturas e de redução hídrica. Nosso foco deve ser nas práticas que trarão maior resiliência ao setor produtivo”, acrescenta.
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