Para as dimensões humanas, um passeio a pé pelo bairro de Eixample, em Barcelona, ou mesmo pela Recoleta, em Buenos Aires, gera uma sensação de bem-estar. Os hóspedes ou moradores dessas regiões, inclusive, podem esquecer o carro para quase tudo – ou, então, pegar o transporte público para se deslocar para outros pontos da cidade. Prefere Nova York? O mesmo exemplo, então, serve para o East Village.
Apesar das várias diferenças que existem entre as três regiões, há ao menos uma semelhança urbanística entre elas. O adensamento populacional, o que permite inserir os três locais no hall de exemplos de zonas compactas de uma cidade. Nos três casos, a quantidade de habitantes por quilômetro quadrado varia de 32 mil a 36 mil pessoas.
Como dizem os especialistas em planejamento urbano, adensar é diferente de verticalizar uma região. A cidade compacta, por mais utópica que possa parecer para as realidades brasileiras, é aquela em que a ocupação do solo é caracterizada pelo compartilhamento de usos, estruturado pelo sistema de transporte público e mobilidade ativa, privilegiando, portanto, as relações de proximidade.
Quando se mapeia algo parecido no Brasil, se chega a bairros como o da Bela Vista, na região central da capital paulista, ou ao Leblon, no Rio de Janeiro. O exemplo paulistano com 26,7 mil habitantes por quilômetro quadrado e o carioca, com 24 mil. Ou seja, menos do que os casos internacionais.
No exemplo específico de São Paulo, a guinada urbanística para um modelo mais americano se acentuou nos últimos 50 anos. Quando o carro e o espraiamento dos bairros mais populosos e populares passaram a ser decisivos para o desenvolvimento da cidade. Conclusão, a qualidade de vida passou a ser um desafio, com pessoas tendo que se deslocar horas todos os dias, na ida e na volta, do trabalho para casa. É por isso que muitas das pesquisas feitas nos últimos meses atestam que o trabalho híbrido veio para ficar.
“O adensamento em áreas nobres da cidade, em Pinheiros, por exemplo, é mais fácil de ocorrer. O desafio é levar isso para as regiões menos centrais, como a zona leste. A solução, neste caso, passa pela indução de novos centros urbanos, com mix de serviços e de empregos, que não está ocorrendo”, afirma o urbanista Gustavo Partezani, especialista no desenvolvimento de projetos urbanos e políticas públicas.
O plano diretor atual da cidade de São Paulo, aprovado em 2014, instaurou regras discutidas com toda a sociedade, para aumentar o adensamento da cidade ao longo dos eixos de transporte público, como os corredores de ônibus e as linhas de metrô. Ao mesmo tempo que impôs limites para a construção nos chamados miolos de bairro. A ideia, nesse caso, era evitar um paliteiro de prédios com poucas pessoas dentro de cada um deles. Processo que exacerba a verticalização da cidade, mas não o seu adensamento.
Os números mais recentes sobre construção de edifícios nos vários distritos da cidade, registrados na versão de outubro de 2021 do Relatório de Monitoramento e Avaliação da Implementação do Plano Diretor Estratégico – 2014 a 2020, indicam uma mudança no padrão construtivo do início do século.
Em 2018 e 2019, a quantidade de área construída total nos eixos de transporte, e em outras zonas definidas pela lei como importantes para se aumentar o adensamento, representou, respectivamente, 82,31% e 97,00% do total licenciado nos miolos de bairro – em 2014 era de 9% nos eixos de transporte e 48% nos milos. Resultados que foram alcançados mesmo com a área edificável dos eixos sendo muito menor do que a área disponível nos chamados miolos dos bairros.
“São Paulo é uma cidade de ocupação extensiva, heterogênea e segregada, caracterizada por densidades populacionais baixas para uma metrópole do seu porte, além de ser multidimensional e complexa. Os dados de monitoramento do Plano Diretor mostram que a produção imobiliária do mercado formal tem se concentrado nas zonas diretamente relacionadas com a oferta de transporte público de média e alta capacidade. Outra face do mesmo processo, as zonas reconhecidas como "miolos de bairro" apresentam o seu adensamento relativo diminuído. Esse vetor de produção do estoque construído indica haver o (re)adensamento de setores preexistentes da cidade”, afirma Fernando de Mello Franco, professor da Universidade Mackenzie e ex-Secretário Municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo.
Processo longo
Os próximos anos, entretanto, vão ser decisivos para mostrar qual caminho São Paulo, e as cidades muitas vezes são vivas e seguem os seus caminhos mesmo com a lei indicando outro, vai tomar. Se existe o exemplo de Seul, onde limitações rígidas nas regras de construção fizeram o preço da terra multiplicar por 20 vezes entre 1970 e 1990, há também o de Curitiba, como lembra Mauro Calliari, doutor em urbanismo pela USP e pesquisador especialista em espaços públicos e caminhabilidade. “Esse padrão de desenvolver o adensamento da cidade orientado pelo transporte público foi buscado com mais insistência pela capital do Paraná no final dos anos 1960. Prédios mais altos ao longo dos corredores de BRT e gabaritos sucessivamente mais baixos à medida que nos afastamos dos eixos de transporte.”
Um pulo ao longo das décadas, e a realidade de Curitiba também mostra que um outro processo urbanístico ocorreu em paralelo nos últimos anos. “É fácil de mostrar também que muitos bairros não planejados, inclusive de favelas, são muito mais densos do que os próprios bairros planejados, o que mostra a dificuldade e os limites do planejamento central”, avalia Calliari.
No caso de São Paulo, mesmo com os números oficiais mostrando uma tendência de adensamento dos eixos de transporte, o que é considerado uma solução ambiental importante para as grandes metrópoles do mundo, o processo é longo, reforça Calliari. “Para o sistema funcionar de verdade, será preciso acompanhar a configuração dos novos empreendimentos. Eles vão mesmo melhorar as ruas? Vão realmente aumentar a densidade e trazer pessoas de perfis diferentes para a mesma região?”, questiona o especialista.
Segundo Calliari, será preciso verificar até que ponto a falta de novos eixos de transporte público não está concentrando os lançamentos em avenidas como a Rebouças ou ao redor das estações de metrô, principalmente nas áreas mais ricas da cidade.
O próprio relatório divulgado no final do ano passado pela Prefeitura de São Paulo mostra outros processos preocupantes em curso na cidade, segundo Mello Franco. “O crescimento extensivo dos tecidos vulneráveis e informais, ainda que em ritmo menor, seguem em marcha. Esse vetor de produção indica a perpetuação do espraiamento urbano”, explica o especialista em planejamento urbano e também um dos idealizadores do atual Plano Diretor paulistano.
Antes de tudo isso, mas em um tempo em que as elites começaram a deixar o centro da cidade, ocorreu o planejamento e a construção das galerias Itapetininga e Nova Barão, entre outras, no centro da cidade. São edifícios, apesar de suas disparidades arquitetônicas, que buscavam criar uma generosidade com o pedestre, que via na convivência e sociabilidade o exercício da cidadania, como afirmam Beatriz Ribeiro de Souza Dias, Bruna Cardoso Silva e Maristella de Moura Pinheiro no artigo Galerias do centro: um olhar sobre modernidade e transformação urbana na cidade de São Paulo.
São projetos que se reinventaram ao longo do tempo e, até hoje, cumprem com uma função urbana. “Em uma metrópole globalizada como São Paulo, onde a especulação imobiliária e o capital muitas vezes ditam as regras, manter esses espaços, essas joias da arquitetura moderna que também representam um imaginário moderno de urbanidade, é algo muito significativo”, afirma as autoras do texto acadêmico. Resta saber o que vão escrever os especialistas em urbanismo, no futuro, sobre a existência ou não de áreas compactas na cidade de São Paulo, principalmente nas zonas mais afastadas do centro.
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