À medida que os desastres climáticos se intensificam e as perspectivas de evitar um aquecimento ainda mais catastrófico diminuem, especialistas da ONU dizem que o mundo deve gastar cinco a dez vezes mais para ajudar pessoas vulneráveis a se adaptarem à inevitável turbulência ambiental.
Milhões de pessoas já estão sofrendo com secas prolongadas, incêndios florestais catastróficos, enchentes crônicas e tempestades crescentes, tudo causado pelo aumento das temperaturas. As ameaças só se intensificarão se as emissões continuarem em sua trajetória atual, aquecendo a Terra em cerca de 2,7 graus Celsius até o final do século.
“As mudanças climáticas já estão acontecendo, os impactos estão aumentando neste exato momento, e vamos ter de lidar com esses impactos crescentes até onde conseguimos enxergar o futuro”, disse Henry Neufeldt, editor-chefe do relatório do Programa de Adaptação do Meio Ambiente das Nações Unidas. “A adaptação seria necessária (...) mesmo se conseguíssemos interromper as emissões hoje”.
Mas as emissões não se interromperam. Pesquisa divulgada na noite de quarta-feira pelo Global Carbon Project mostra que a poluição dos gases do efeito estufa se recuperou quase completamente depois de cair durante a pandemia do coronavírus, impulsionada pelo uso crescente de gás natural e carvão.
O relatório do Programa de Adaptação, que foi revelado na Cúpula Climática COP-26 em Glasgow, na quinta-feira, reflete uma realidade cristalina: é cada vez mais improvável que o mundo cumpra a ambiciosa meta de limitar o aquecimento a 1,5 grau Celsius em relação aos níveis pré-industriais. E isso significa que a humanidade não evitará as consequências catastróficas de um aquecimento maior.
“As pessoas precisam se preparar para algo muito pior”, disse Corinne Le Quere, cientista climática da Universidade de East Anglia, que não participou da pesquisa sobre a adaptação. “Precisamos reduzir para 1,5 grau e nos preparar para 3 graus, essencialmente”.
Em meados do século, de acordo com o relatório, as necessidades de adaptação do mundo em desenvolvimento podem chegar a US$ 500 bilhões por ano. Atualmente, os gastos globais anuais com adaptação são de cerca de US$ 46 bilhões, diz a ONU.
Existem alguns sinais de progresso. Aproximadamente quatro a cada cinco países adotaram alguma política ou estratégia de adaptação nacional. Mais e mais governos estão contatando as comunidades e se coordenando com o setor privado para se prepararem para os riscos crescentes.
Mas ainda não é suficiente, dizem os especialistas. Apenas 14% dos gastos públicos com o clima são direcionados à adaptação, de acordo com o relatório. Na esteira da pandemia covid-19, a maioria dos países não dedicou nenhum de seus gastos de estímulo econômico a projetos que os ajudariam a enfrentar as mudanças ambientais.
No entanto, a pandemia deixou muitos países vulneráveis enterrados em grandes dívidas externas, com poucos recursos para se preparar para as crises ambientais que já estão se instalando. Enquanto isso, as nações ricas ainda não cumpriram a velha promessa de fornecer aos países de baixa renda US$ 100 bilhões por ano para iniciativas climáticas. Um plano apresentado pelos ministros do meio ambiente canadense e alemão disse que a meta de financiamento provavelmente não seria alcançada até 2023, com três anos de atraso.
A frustração com o déficit no financiamento do clima e o desespero com a escalada dos desastres climáticos colocaram a questão da adaptação no centro da COP26.
Representantes de países vulneráveis, junto com grupos da sociedade civil e o próprio secretário-geral da ONU, pediram que os ricos do mundo não apenas cumpram suas promessas financeiras, mas garantam que metade desses fundos sejam destinados a ajudar as pessoas a se ajustarem a um mundo mais quente e perigoso.
“Este é o clamor dos países em desenvolvimento há muito tempo”, disse Harjeet Singh, consultor sênior da Climate Action Network International em Nova Delhi. “Não podemos deixar as pessoas despreparadas para os desastres. Não podemos abandonar as pessoas que já estão enfrentando emergências climáticas."
Singh trabalhou em iniciativas de adaptação em países da Índia ao Malaui. Ele viu como casas elevadas podem proteger as pessoas de inundações e compreendeu como a diversidade de sementes pode ajudar os agricultores a enfrentar as secas. Os sistemas de alerta precoce para condições climáticas severas podem permitir que os produtores saibam quando colher suas safras e significam a diferença entre fome e sobrevivência, disse ele.
“Tem muita inovação e experimentação acontecendo agora no Sul Global”, disse ele. “Acontece que eles não conseguem aumentar a escala dessas iniciativas por causa da falta de recursos”.
O relatório sugere que as áreas com maior necessidade de investimento são agricultura e infraestrutura, seguidas por água e gestão de desastres. Os programas de saúde também estão drasticamente subfinanciados.
Neufeldt, que chefia o programa de Avaliação de Impacto e Análise de Adaptação em uma parceria entre o Programa Ambiental da ONU e a Universidade Técnica da Dinamarca, disse que é difícil solicitar fundos para projetos de adaptação porque estes não oferecem maneiras óbvias de obter retorno sobre investimento.
Também existem poucas iniciativas para avaliar se esses esforços estão funcionando. Apenas um quarto dos países adotou algum sistema de avaliação para seus projetos de adaptação, embora outros 36% estejam desenvolvendo esses sistemas.
Mas as economias avançadas podem reduzir a dívida contraída pelos países em desenvolvimento para lhes dar mais liberdade financeira, disse Neufeldt, o que pode ajudar esses países a se concentrarem na adaptação climática.
Apoiar a adaptação no mundo em desenvolvimento é do interesse de todos, dizem os defensores. Neufeldt apontou que o fracasso em se preparar para o aumento dos riscos climáticos pode levar à “má adaptação” ou a ações que irão agravar os impactos climáticos, aumentando as emissões de gases de efeito estufa.
Sonam Wangdi, que preside um grupo conhecido como Países Menos Desenvolvidos, disse que as 46 nações do bloco representam mais de 1 bilhão de pessoas, mas são responsáveis por menos de 1% das emissões globais.
Até mesmo sua própria nação, o Butão, é carbono negativo, e sua constituição exige que pelo menos 60% de suas terras permaneçam como florestas conservadas.
“Fizemos muito, mas não estamos protegidos dos impactos das mudanças climáticas”, disse Wangdi em uma entrevista coletiva em Glasgow, na quarta-feira, observando que o derretimento das geleiras do Himalaia pode criar perigosos lagos de alta altitude, os quais poderão se romper e provocar inundações catastróficas.
“Não há muito que possamos fazer. Então teremos uma crise climática nas mãos”, disse ele.
É por isso que seu país e outros estão tão determinados a garantir que o mundo desenvolvido realmente financie iniciativas de adaptação, como prometido.
“Para nós, nossas vidas dependem das decisões tomadas aqui em Glasgow”, disse ele. “Nossas vidas vão depender dos compromissos que forem feitos aqui”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.