O que é ‘muvuca de sementes’ e por que isso ajuda a recuperar áreas degradadas da floresta?

Método de semeadura direta com mistura de espécies tem se mostrado fundamental na restauração de áreas degradadas da Amazônia e da Mata Atlântica

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Por Ennio Rodrigues
Atualização:

Em certos contextos, a palavra “muvuca” remete à confusão, agitação e pode até ter conotação pejorativa. Porém, o termo de origem africana - Mvúka, banta e língua quicongo - também pode ser entendido como mistura. Essa é a definição usada na expressão “muvuca de sementes”, técnica que tem sido utilizada por diversos coletivos brasileiros para conciliar a restauração de áreas degradadas do País com a possibilidade de melhorar a vida de centenas de famílias de coletoras e coletores.

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A muvuca nada mais é do que a mistura de sementes de diversas espécies vegetais para plantio por semeadura direta. Para a recomposição ambiental, podem-se misturar espécies arbustivas e arbóreas junto com leguminosas. Adubos verdes como o feijão de porco e o guandu também são utilizados para garantir a cobertura do solo e evitar o crescimento de espécies invasoras.

Em 2023, o desmatamento chegou a uma área de 5.151 km² na Amazônia, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), do Ministério de Ciência e Tecnologia. Na Mata Atlântica, um dos biomas brasileiros mais destruídos historicamente, foram 9.216 km² de área desmatada, entre janeiro e agosto de 2023, de acordo com o boletim do Sistema de Alertas de Desmatamento (SAD) Mata Atlântica, divulgado em novembro do ano passado.

Justamente nesses dois biomas têm se estabelecido as redes de sementes. Coletivos que se inspiram na natureza para proliferar as espécies nativas da flora brasileira. Coletores locais, como indígenas na Amazônia e quilombolas na Mata Atlântica, percorrem as matas em busca de diferentes espécies de sementes que atendem demandas de universidades, viveiros e empresas.

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Muvuca de sementes é uma seleção estratégica de diferentes espécies nativas de cada bioma Foto: Andressa Cabral Botelho/ISA

Protetores do Vale do Ribeira

Começou em 2017, com cerca de dez pessoas quilombolas da região Vale do Ribeira, no sudeste de São Paulo. A partir de uma parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), que já trabalhava com redes de sementes na região amazônica, esse grupo de moradores dos quilombos da região passou a olhar para as sementes que os rodeavam de uma forma diferente.

“Em 2017, quando fui conhecer com o pessoal do ISA uma rede de sementes em Mato Grosso, voltei com a ideia de continuar fazendo isso aqui na minha comunidade. A gente sempre teve a riqueza da mata de pé, só que antes era só mata de pé e, depois com a Rede, aprendemos que é muito mais”, conta Maria Tereza Vieira, coletora da Rede de Sementes do Vale do Ribeira.

De acordo com o assessor técnico do ISA, Juliano Nascimento, o Vale do Ribeira é “o maior corredor remanescente de Mata Atlântica do Brasil”. Mais de 85% das florestas da região estão conservadas, o que corresponde a 2,1 milhões de hectares de matas, ou seja, 21% do que ainda resta de todo o bioma.

No primeiro ano, a Rede de Sementes do Vale do Ribeira conseguiu coletar 40kg de sementes diversas. Já em 2023, a rede quadruplicou de tamanho, envolvendo 60 famílias, ultrapassando a marca de seis toneladas de sementes coletadas. Estima-se que a ação dos quilombolas da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, até aqui, já tenha possibilitado a restauração de cerca de 170 hectares de Mata Atlântica.

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Cerca de 60 famílias integram a Rede de Sementes do Vale do Ribeira Foto: Claudio Tavares/ISA

Benefícios colhidos do chão

As transformações positivas que a rede vem proporcionando transbordam a necessária restauração ambiental. O coletivo se tornou uma opção de renda para a população local.

“Para nós, mulheres, é muito interessante a Rede porque, além da renda, é uma forma de compartilharmos e preservarmos os conhecimentos ancestrais que nós aprendemos sobre a mata. A gente usa, mas usa de forma consciente para ela continuar sempre ali”, resume Maria Tereza. As sementes, que antes apenas eram parte da paisagem, passaram a ser possibilidade real de melhoria de vida.

Além disso, os laços entre os moradores foram se fortalecendo com o crescimento da Rede. As mulheres representam mais de 60% do total das pessoas que colhem sementes. Com isso, vêm a autonomia, o empoderamento pessoal e a melhoria comunitária. Isso porque, no geral, elas investem o que recebem de forma mais coletiva, na casa ou em saúde, se comparadas aos homens coletores.

Em dezembro de 2023, a Rede de Sementes do Vale do Ribeira formalizou-se como cooperativa, dando mais um passo na estruturação e profissionalização da iniciativa. Coletoras e coletores de cinco quilombos fazem parte da rede: Nhunguara, Bombas, Maria Rosa, André Lopes e São Pedro.

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“O objetivo da formalização é organizar cada vez mais o trabalho da rede, agregando qualidade, tecnologia e profissionalismo no trabalho feito por quem mais entende da mata: as populações que vivem nela há séculos”, sintetiza Nascimento.

Rede das redes

As muvucas de sementes que têm modificado as vidas das pessoas no Vale do Ribeira estão conectadas a outras redes de sementes, dentro do Redário. Espalhados por 12 Estados, são 24 redes e 1.200 coletoras e coletores que se dedicam à reunião estratégica de plantas com ciclos de vida e funções biológicas complementares para formar as muvucas que são comercializadas.

O Redário foi lançado em julho de 2023, a partir da necessidade de articular diferentes redes de sementes pelo País. No somatório, segundo o portal do projeto, as muvucas de sementes produzidas pela articulação possibilitaram a restauração ecológica de mais de 8 mil hectares, com 46 toneladas de sementes nativas coletadas.

Alternativa também para produtores rurais

Com o aumento da fiscalização ambiental, por um lado, e, por outro, das possibilidades de crédito verde no horizonte de regulamentação, as muvucas também carregam benefícios potenciais para proprietários de terra. Segundo Nascimento, vivemos a chamada década da restauração.

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“Mudanças em políticas internacionais e nacionais, têm aumentado a demanda por matéria prima de restauração no país. Nesse cenário, as populações que já vivem nas florestas e matas são as que melhor podem fornecer esses materiais”, conta o assessor técnico.

Atualmente, no Brasil, de acordo com a Lei 12.651/2012, todo imóvel rural precisa ter uma área com vegetação nativa preservada. É a “Área de Reserva Legal”, que pode variar de 80% a 20% do total da propriedade, dependendo de onde ela está localizada. Além disso, matas ciliares, de topos de morros, entre outras, se enquadram como Áreas de Preservação Permanente.

As muvucas de sementes são compostas exatamente a partir de espécies de cada região. Juliano Nascimento elenca proprietários rurais, universidades e até empresas mineradoras e hidrelétricas como principais consumidores das muvucas de sementes atualmente.

Segundo o assessor, comparativamente, a técnica de semeadura direta com muvucas é muito mais eficiente do que o plantio de mudas, por exemplo. Enquanto 20 hectares de áreas a serem restauradas poderiam ser plantados com muvucas em um ou dois dias, com as mudas, esse mesmo espaço precisaria de cerca de dez dias de trabalho.

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“Essas redes nos mostram como é importante perceber as potencialidades produtivas dentro das comunidades. As florestas e matas que são muitas vezes vistas como empecilho ao desenvolvimento econômico, com a ajuda dos saberes tradicionais, mostram justamente o contrário: é possível gerar renda, qualificar profissionalmente as pessoas, agregar consciência e valor, mantendo a natureza de pé”, diz Nascimento.

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