Onde fica o 1º refúgio verde do Brasil a entrar em lista global de áreas preservadas

Reserva Extrativista Marinha de Soure, localizada na Ilha de Marajó, no Pará, integra a maior faixa contínua de manguezais do planeta

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Por Martina Medina

A Reserva Extrativista (Resex) Marinha de Soure, na Ilha de Marajó (PA), na foz do Rio Amazonas, passou a integrar a Lista Verde de Áreas Protegidas da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) em 2024. A Resex no Pará é a primeira Unidade de Conservação (UC) brasileira a entrar na relação, que certifica as melhores práticas globais de gestão e conservação em áreas protegidas.

Integrando a maior faixa contínua de manguezais do planeta e com algumas das florestas de mangue mais altas do mundo, incluindo árvores que superam 40 metros de altura, a Resex Marinha de Soure tem grande biodiversidade. O território abriga comunidades pesqueiras e promove o uso tradicional e sustentável dos recursos naturais. Entre as centenas de espécies existentes ali estão os peixes-boi e caranguejos de mangue.

Reserva Extrativista Marinha de Soure é a primeira unidade de conservação do Brasil a ser elencada na Lista Verde de Áreas Protegidas da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN). Foto: Acervo/ICMBio

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Paulo Torres, extrativista local há 40 anos, preside a Associação dos Usuários da Reserva Extrativista Marinha de Soure (Assuremas), detentora do direito de uso do território da Resex. Sua expectativa é de que a certificação amplie a atenção dada ao local, bem como o recurso destinado à conservação. “A importância deste certificado para nós, órgãos e usuários, é que sairemos da invisibilidade e que nossos trabalhos de conservação vão poder atrair mais investimentos para melhorar a vida de todos”, observa.

Com duração de cinco anos, a certificação implica em aproveitar esse período para angariar apoio e divulgar a Resex, bem como o trabalho feito pelas comunidades locais, de modo a consolidar a proteção socioambiental, sugere Torres. “A gente espera que tenha mais projeto voltado aos extrativistas, pois a nossa parte a gente já fez e continua fazendo, que é conservar a floresta de mangue em pé”, resume.

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Durante o processo de candidatura, a associação fez uma vivência com os avaliadores da IUCN, mostrando a extração de caranguejo, do molusco turu, de peixes, de camarão, e o turismo de base comunitária. “O objetivo é fortalecer todos esses trabalhos para que esses trabalhadores tenham uma renda e melhorem de vida”, diz Torres. “Nós, pessoas extrativistas, precisamos de apoio para continuar com esse nosso trabalho, para que isso siga de mim para os meus filhos e, dos meus filhos, para os filhos deles.”

Torres esteve em Cali, na Colômbia, para receber a certificação no dia 27 de outubro, durante a 16.ª reunião da Conferência das Partes do Acordo sobre Biodiversidade (COP 16 da Biodiversidade). A inclusão na lista havia sido formalizada um mês antes pela IUCN. Além da reserva brasileira, entraram no rol outras 11 áreas protegidas na Arábia Saudita, China, Colômbia, França e Zâmbia.

O local que hoje abriga a Resex teve seu processo de reconhecimento como unidade de conservação iniciado em 1997 através da demanda da Associação dos Caranguejeiros de Soure, à época, também presidida por Torres. Eles reivindicavam o direito de fazer o uso sustentável dos manguezais e pediam fiscalização para coibir a entrada de extrativistas de outras localidades que levavam grande quantidade de caranguejo por meio de técnicas predatórias. Outras comunidades, como as pesqueiras, se uniram ao movimento até que, em 2001, a área foi reconhecida como a primeira reserva extrativista do Estado do Pará.

Praia do Goiabal na Ilha de Marajó; território abriga comunidades pesqueiras e promove o uso tradicional e sustentável dos recursos naturais. Foto: Lisângela Cassiano/Acervo Pessoal

Processo seletivo

O processo de busca pela certificação da IUCN levou a uma extensa análise sobre o funcionamento da UC. A reserva elencou seus instrumentos eficazes de gestão, como o Conselho Deliberativo, com participantes ativos da comunidade local, plano de manejo, projetos de educação ambiental, operações de fiscalização, perfil atualizado das 1.600 famílias beneficiárias, além de sinalização do perímetro da unidade ao longo da área de 29 mil hectares.

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Lisângela Cassiano, chefe da Resex, encabeçou a revisão dos processos internos. Ao longo dessa sistematização, lacunas foram sendo identificadas e trabalhadas para atender aos padrões internacionais. Entre elas, a publicidade dos resultados de gestão através das redes sociais e a participação de jovens e mulheres nas ações da unidade foram ampliadas e melhoradas.

Outro ponto aprimorado foi a divulgação de atividades de turismo comunitário e de ecoturismo. “Mesmo sendo um importante destino turístico da região, não havia referências, sinalização ou propagandas sobre esses serviços”, lamenta Cassiano. Segundo ela, o poder público se concentra no turismo de massa, direcionado às quatro praias paradisíacas da reserva, que recebem milhares de visitantes por ano. “Esta nova abordagem sobre os mangues de Soure ajudará sem dúvidas nos esforços para a sua conservação.”

“A escassez de recurso disponível na unidade fez com que o processo de candidatura fosse tomado como uma estratégia para dar visibilidade à UC e, assim, conseguir recursos para as diversas atividades demandadas por seus beneficiários”, explica. O processo de certificação da IUCN, garantiu financiamento da empresa de tecnologia Huawei através do edital Tech4Nature, em parceria com RARE, UFPA e IBD, garantindo à Resex adesão ao Programa Monitora.

Lisângela Cassiano, chefe da Resex: 'Nova abordagem sobre os mangues ajudará nos esforços para a sua conservação'. Foto: Lisângela Cassiano/Acervo Pessoal

A conquista, segundo a chefe da reserva, é uma resposta aos questionamentos sobre a eficácia das unidades de conservação em proteger o meio ambiente. “O selo, que exige uma avaliação bem criteriosa, nos deixa muito satisfeitos em demonstrar que as Resex são, sim, eficientes para gestão e conservação da natureza”, diz. A expectativa, acrescenta Cassiano, é de que mais parcerias surjam e que novas unidades de conservação do Brasil se sintam motivadas a participar da seleção da lista verde da IUCN.

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“A visibilidade também é importante para a garantia do território para seus beneficiários, para valorização da cultura extrativista, para destacar a importância dos manguezais para saúde do planeta, e para valorizar a Resex e seus beneficiários numa região que historicamente sempre foi vista como área destinada à pecuária extensiva.”

Efeitos do reconhecimento

Marcus Fernandes, pesquisador do Laboratório de Ecologia de Manguezal (Lama), da Universidade Federal do Pará (UFPA), celebra os efeitos da inclusão da reserva na lista de conservação ambiental. “Essa conquista posiciona a Resex Marinha de Soure como um exemplo relevante no Brasil e no mundo, promovendo a integração entre a preservação ambiental e o uso sustentável dos recursos naturais pelas comunidades locais”, resume.

Segundo ele, o reconhecimento internacional gera um modelo de sustentabilidade que reforça a importância do conhecimento tradicional na conservação de ambientes protegidos, especialmente os manguezais. O ecossistema de transição entre os ambientes marinho e terrestre é tido como crucial no contexto de mudança climática. Afinal, estoca até dez vezes mais gás carbônico do que a floresta continental e funciona como um escudo contra enchentes, erosão e ressacas.

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“A importância está em servir de inspiração para as outras áreas protegidas no país e no mundo, cujo objetivo seja aliar conservação e desenvolvimento sustentável”, afirma. Entre os demais resultados práticos do ingresso na lista está a ampliação do acesso a benefícios e recursos, tanto dos órgãos governamentais quanto do terceiro setor, para o financiamento de projetos de manejo e conservação, acrescenta o especialista.

Fernandes enumera entre os casos emblemáticos de áreas de conservação que entraram na lista verde, o Parque Nacional de Banff, no Canadá, que aprimorou sua gestão de turismo sustentável, reduzindo impactos de atividades humanas, além de fortalecer a conservação dos ursos-pardos, atraindo recursos internacionais para suas iniciativas. E o Parque Nacional de Zhangjiajie, na China, que melhorou a proteção contra desmatamento e atividades ilegais e ecoturismo, envolvendo comunidades locais.

Segundo a IUCN, a Resex trouxe à comunidade local acesso a políticas públicas, incluindo crédito habitacional e de desenvolvimento, além de saneamento básico. O órgão internacional observa ainda que, desde 2019, a reserva não registrou nenhum alerta de desmatamento no Projeto de Monitoramento do Desflorestamento na Amazônia Legal (Prodes). Para Fernandes, a entrada na lista verde tem o potencial de reforçar as políticas públicas que regulam o uso dos recursos e a fiscalização de atividades ilegais, além de incentivar alternativas econômicas para reduzir a dependência de atividades extrativistas.

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A conquista pode ainda fortalecer argumentos contrários a projetos que causariam impactos socioambientais na região, como a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas, onde a Resex está localizada. “O selo da IUCN pode atrair a atenção de organizações ambientais internacionais, ONGs e outros grupos que lutam pela conservação. Essas entidades podem oferecer suporte adicional, promover o engajamento de comunidades locais e ampliar a visibilidade da causa, tornando a resistência à exploração de petróleo mais forte e globalmente apoiada”, aposta Cassiano, chefe da Resex.

“Embora a inclusão na Lista Verde não tenha caráter legal para barrar qualquer tipo de projeto”, pondera Mendes, “isso aumenta a pressão de organismos nacionais e internacionais e da sociedade civil para evitar empreendimentos que possam trazer riscos ambientais elevados para a região, a qual deve ser considerada uma área estratégica para a conservação das paisagens e biodiversidade únicas”.

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