ENVIADA ESPECIAL A BELÉM- “A árvore não é nem minha nem do Lula, é da floresta”, diz Dona Nena aos pés de uma sumaúma centenária. Moradora da Ilha do Combu, em Belém, ela recebeu em março uma visita ilustre. Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Emmanuel Macron, da França, estiveram em sua casa ao passarem pela capital paraense, sede da Cúpula do Clima (COP-30) em 2025. Na mesma sumaúma, os chefes de Estado foram fotografados em uma paisagem que mostrou ao mundo as riquezas da Amazônia.
O “casamento” de Lula e Macron, como ficou conhecido, deixou de fora dos holofotes, no entanto, outros aspectos da realidade local: a falta de sistema de água potável e esgoto e negócios que exploram o turismo de forma predatória. O Estado diz buscar recursos para implementar uma rede de água e esgoto na região (leia mais abaixo). Os problemas deste cartão-postal da bioeconomia foram relatados a Lula em carta entregue por Dona Nena.
“Quero que façam as coisas para a vida da gente, não para a COP-30. Não adianta fazer coisas só para gringo ver. Depois eles vão embora e o que fica pra gente?”, afirma ela, fundadora da fábrica de chocolate “Filha do Combu”, um dos empreendimentos mais bem-sucedidos do local.
Vivem no Combu 480 famílias. Em 1997, a Ilha de 15 km² se tornou uma Área de Proteção Ambiental (APA), mas até hoje não tem plano de manejo, que define as zonas da ilha e as regras para cada uma.
O Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade (Ideflor-Bio) diz, em nota, que o plano de gestão para a área está em fase final de elaboração. É previsto para março o documento para detalhar o zoneamento, normas e ações planejadas pelo Estado para a ilha.
Em 2006, Dona Nena passou a utilizar o cacau cultivado em seu quintal para produzir chocolates rústicos. Com o tempo, a produção se diversificou, ganhou escala e hoje o chocolate é entregue para todo o Brasil. A empresa tem como pilar a sustentabilidade e manutenção da cultura ribeirinha.
A empreendedora criou um tanque de evapotranspiração para destinar o próprio esgoto. O modelo permite que fezes virem adubo para terra, sem contaminar solo ou o lençol freático. O sistema foi desenhado por professoras da Universidade Federal Rural da Amazônia.
“A Ilha do Combu é uma APA, que só tem o nome de APA. É um perigo até de saúde para as pessoas, por não termos esgoto legal e nosso rio estar morrendo”, afirma Dona Nena.
Sem água potável na ilha, à beira do Rio Guamá, moradores compram água mineral e os estabelecimentos turísticos contratam barcos-pipa. Quem não tem condição usa água da ilha, ainda que imprópria para consumo.
O Ministério Público do Pará (MP-PA) tem acompanhado a elaboração de um projeto pelo município de Belém e pela Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa) para fornecer água para o Combu. Procurada, a prefeitura disse que esgoto e água encanada são competência da Cosanpa. Já a companhia sugeriu dirigir os questionamentos ao município.
Em agosto, a Secretaria de Estado de Obras Públicas chegou a informar ao MP plano de licitação para fornecimento de água potável, “em virtude da proximidade da COP”, visto “o apelo turístico” da ilha para o evento. No último dia 2, porém, a pasta disse ao MP que não há recursos para implementar o serviço. O Estado informou buscar verba para financiar a instalação da rede de água e esgoto na ilha.
Outros empreendimentos locais buscam relação harmônica com a natureza. No restaurante Saldosa Maloca, um dos mais tradicionais do Combu, a dona e chef Prazeres Quaresma recicla o lixo em biodigestores instalados no quintal. O gás gerado pelo processo é utilizado na cozinha.
O Saldosa Maloca também aboliu garrafas plásticas e serve água em copos, sem que os clientes precisem pagar por isso. Outros tipos de bebida são vendidos só em formato de garrafa de vidro e lata. “Em um ano, deixamos de colocar no ambiente mais de 5 mil garrafas”, conta ela. “O objetivo é chegar ao lixo zero.”
Hoje, apenas o lixo do banheiro e papéis que saem engordurados da cozinha não têm tratamento no restaurante. Os demais vão para biodigestores, compostagem ou reciclagem.
“Se ficar um mês sem coletar, levo para cooperativa e tudo certo. E quem não tem esse trabalho, como vai fazer com esse lixo fétido?”, questionou, em referência aos problemas de coleta enfrentados no local. Em nota, a prefeitura informou que o prestador de serviços contratado para recolher o lixo tinha pendências que já foram regularizadas.
“Vivemos em um ecossistema extremamente frágil e que precisa ser cuidado. A Ilha do Combu não é para ser alvo do turismo de massa que está acontecendo”, defende Prazeres.
Moradores se queixam que o turismo tem sido explorado de modo predatório, com fluxo intenso de lanchas, causando riscos aos visitantes. Segundo relatos, há estabelecimentos que poluem o rio com cloro do tratamento feito em piscinas dos bares e restaurantes, e com outros rejeitos, além de festas com som alto. Mesmo no meio da vegetação, caminhando sob árvores enormes, é possível ouvir o som alto de alguns restaurantes.
O Combu funciona como destino de fim de semana e férias da população da região metropolitana, sobretudo em julho, quando a região vive o verão amazônico. Neste mês, o fluxo aumenta consideravelmente, elevando os impactos.
A prefeitura informou que a fiscalização do tráfego de barcos é atribuição da Capitania dos Portos, mas diz fazer patrulhas na região com a guarda municipal e mais agentes. A Marinha afirmou que a Fiscalização do Tráfego Aquaviário (FTA) é realizada, rotineiramente, por equipes de inspetores navais e que intensifica operações nas férias com a operação “Navegue seguro”. A Força diz ainda que o foco da fiscalização é proteger a da vida humana, garantir a segurança da navegação e a prevenção da poluição hídrica.
A gestão municipal também disse que a Secretaria de Meio Ambiente faz fiscalização e licenciamento constante dos restaurantes da ilha e campanhas de conscientização sobre despejo de lixo nos rios. E informou que, em julho, passou a fazer testes de balneabilidade na ilha.
Andirobeiras do Combu
As principais atividades do Combu são o turismo e a extração de açaí. Mas, aos poucos, os moradores têm se apropriado da floresta para produzir outros ativos que possam diversificar o sustento de quem vive na ilha. É o caso das andirobeiras, um grupo de mulheres que passou a produzir óleo de andiroba, espécie típica da Amazônia, a partir dos frutos de seus próprios quintais.
“A gente descia no quintal e via muitas sementes de andiroba e esse costume de extrair o óleo já não existia mais. Então a gente pensou: precisa resgatar isso”, conta Kelli Quaresma, 46 anos, uma das andirobeiras do Combu.
As extrativistas colhem as andirobas que caem e realizam um processo meticuloso que inclui lavagem, secagem, cozimento, retirada da amendôa e extração do óleo. A partir daí fazem, além do próprio óleo, sabonetes, perfumes, licores e mais produtos. Cerca de 10 quilos de andiroba rendem até três litros de óleo, vendido em média a R$ 12 por 10 ml.
No Combu, os moradores que buscam trabalhar com a bioeconomia retomam não só práticas sustentáveis, mas também as crenças dos antepassados durante a produção. Assim, além da atuação para preservar a natureza, a produção das andirobeiras também tem impacto cultural.
“No período em que a andiroba está cozida e no período até a extração final do óleo, rezam as lendas que as mulheres grávidas ou menstruadas não podem ver a massa se não, ela seca. Então, fazemos esse revezamento”, conta Kelli.
Kelli criou as marcas “Curupira” e “Ornatos”, esta última com perfumes cujas essências são todas de plantas amazônicas, como estoraque, oriza, patchouli, priprioca, entre outras.
Danúbia Sarmanho, de 42 anos, se organizou junto de mais 14 moradoras na Associação de Mulheres Extrativistas do Combu (AME) para fortalecer a produção - e ajudar na preservação ambiental. “A gente procura falar para as pessoas: não desmatem, porque a gente faz um trabalho com andiroba”, relata.
Antes, ela trabalhava em um consultório odontológico em Belém, mas agora seu sustento depende integralmente da floresta, onde concilia a produção dos derivados da andiroba e o trabalho na fábrica de chocolate de Dona Nena. “Passei a dar mais valor ao lugar onde moro e a tudo que há nele, porque é rico.”