Em junho, o Pantanal registrou recorde de focos de incêndio, levando o governo de Mato Grosso do Sul a suspender queimas controladas. Cientistas e autoridades temem que se repita a tragédia ambiental de 2020, que deixou milhares de animais mortos. Por outro lado, pequenas áreas da unidade de conservação do Sesc Pantanal, em Mato Grosso, foram atingidas com autorização federal na metade do mês. O motivo foi justamente desenvolver uma estratégia para frear novos focos de chamas.
Segundo a gerente geral do Polo Socioambiental Sesc Pantanal, Cristina Cuiabália, a ação seguiu uma série de parâmetros técnicos e foi acompanhada por bombeiros, agentes ambientais, chefes de brigadas e gestores da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), que não registrou outros focos de incêndio no período.
A contradição aparente entre esferas de governo se explica pelos diferentes contextos de fogo e suas jurisdições. A queima controlada é realizada em propriedades particulares com finalidade econômica.
Um exemplo é o da limpeza de pastagens, regulamentada por leis estaduais. Já as áreas de reserva podem realizar com o aval federal queimas prescritas, que têm fins ecológicos e de conservação.
“Muitas vezes, para diminuir a ocorrência de incêndios severos em épocas inadequadas, a gente precisa usar o fogo de forma planejada e com o menor Impacto ecológico possível”, disse ao Estadão João Morita, coordenador de manejo integrado do fogo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), ligado ao Ministério do Meio Ambiente.
A queima prescrita começou a ser implementada na maior reserva natural privada do Pantanal no mês passado, integrando seu novo plano de Manejo Integrado do Fogo (MIF). A abordagem utiliza essa e outras estratégias para reduzir incêndios florestais, com autorização e suporte técnico do ICMBio, órgão responsável por controlar e fiscalizar as unidades de conservação.
Novas queimas foram realizadas nesta semana, nos dias 9 e 10 de julho, mantendo os mesmos cuidados da primeira, como verificar as condições meteorológicas (um dos requisitos é não haver vento para o fogo não espalhar) e de umidade, elegendo o período mais favorável no dia, normalmente início da manhã ou fim de tarde para queimar só áreas previamente determinadas em estudos.
Segundo Cristina Cuiabália, a queima prescrita é utilizada em unidades de conservação para reduzir a vegetação seca em áreas com mais resiliência ao fogo, protegendo assim outras que “não podem ver fogo de jeito nenhum”. No Pantanal a vegetação não é uniforme e há espécies mais vulneráveis e mais resistentes ao fogo.
Além de visar a proteger áreas mais sensíveis, essas queimas são feitas em locais estratégicos em relação aos pontos de entrada do fogo na reserva, explica Morita.
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Protocolo foi estudado por 6 anos
Praticadas internacionalmente, as políticas de manejo integrado do fogo já vinham sendo introduzidas pelo órgão federal em parques nacionais do Cerrado e Amazônia, com resultados positivos.
“A gente ganhou muita experiência (em queimas prescritas) nesses últimos anos, isso vem dando muito certo nas unidades de conservação do Cerrado. O Pantanal tem especificidades mas também tem semelhanças e a gente precisa ampliar o uso do fogo planejado para evitar grandes incêndios”, disse Morita.
A experiência de queima prescrita na reserva do Sesc Pantanal é a primeira em uma unidade de conservação do bioma, e começou a ser estudada pelos pesquisadores e gestores da RPPN em 2018.
“A gente não tinha nenhuma referência”, disse Cristina ao Estadão. Foram necessários experimentos para verificar o comportamento do fogo em diferentes épocas e tipos de vegetação antes de iniciar as queimas prescritas.
“Selecionamos quatro amostras nas diferentes fisionomias (tipos de vegetação). Numa área mais florestal, pegamos um hectare e queimamos durante a cheia, no período entre a cheia e a seca e no extremo da seca, deixando uma área de referência sem aplicar queima prescrita. Isso foi feito também para o campo de Murundus, área com cordilheiras e campo inundável”, explicou Cristina.
De acordo com os especialistas, o manejo integrado do fogo se apoia em conhecimentos científicos e tradicionais sobre a ecologia do fogo – como afeta animais, plantas, solo e comunidades ligadas ao bioma, buscando se adaptar ao cenário climático de um Pantanal cada vez mais seco.
“A gente observa que o comportamento do fogo, utilizado tradicionalmente para fazer o manejo das áreas, está mudando. Até na época de chuva ele está se comportando de forma diferente”, disse Cuiabália.
Ainda que as queimas prescritas venham trazendo bons resultados para a prevenção de incêndios florestais nas áreas protegidas, Morita alerta que a ampliação do período de seca nos biomas atrapalha sua execução:
“A gente só não conseguiu fazer este ano numa maior escala no Pantanal por causa da seca histórica. Não teve janela de oportunidade em todos os lugares para fazer esse trabalho”, lamentou.
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O histórico da reserva com o fogo
Criada há 27 anos, a RPPN Sesc Pantanal se tornou um polo de ecoturismo, educação e pesquisa no bioma. A primeira brigada de incêndio foi implementada poucos anos depois de sua fundação, em 2000, com a participação de moradores das comunidades do entorno que conhecem o bioma e o manejo do fogo.
Desde então, a unidade contrata anualmente cerca de 30 brigadistas por um período de seis meses, durante a estação seca. O plano aprovado em 2024 para lidar com o fogo trouxe algumas adaptações.
“Esse ano, a gente ampliou esse período para oito meses e agora vai efetivar uma brigada permanente”, disse Cuiabália.
Segundo ela, a elaboração do Plano de Manejo Integrado do Fogo da reserva entre 2021 e 2023 contribuiu para sistematizar o trabalho já realizado nesse âmbito, adicionando a realização das queimas prescritas, que são “uma pequena parte” do plano.
Medidas do Plano de Manejo do Fogo da RPPN Sesc Pantanal
- contratação e treinamento de brigada de incêndio;
- sensibilização de comunidades do entorno em relação ao risco de incêndios na época de seca;
- monitoramento de focos de queimada por satélite e câmeras de longo alcance;
- construção de poços artesianos para combate do fogo em cenários de seca;
- queima prescrita.
No caso da RPPN, a adoção do MIF não visa apenas ao manejo da área, mas a atingir os objetivos de conservação e de melhoria do status das espécies ameaçadas de extinção, específicos da reserva.
Isso acontece, por exemplo, ao evitar os incêndios florestais que vem tendo impactos devastadores sobre o bioma. Em 2020, 93% da área da reserva foi atingida pelo fogo e pelo menos 20 mil animais foram mortos, segundo levantamento do Grupo de Estudos em Vida Silvestre, feito por pesquisadores de diferentes instituições. Foi
A expectativa é que o plano elaborado possa servir de referência para expandir a prática para outras unidades de conservação do Pantanal.
“A ideia é ganhar escala nos próximos anos, nessa e em outras reservas particulares. Existem grandes mosaicos de RPPN na Chapada dos Veadeiros, outro ali próximo do Parque Estadual dos Pirineus, no Goiás, e no entorno também do Parque Nacional do Pantanal”, disse o coordenador de manejo integrado do fogo do ICMBio, João Morita.
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