Para resgatar uma espécie de pato em extinção na natureza, pesquisadores enfrentam saga

Ovos de pato-mergulhão foram recolhidos de ninho em paredão na Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Filhotes nasceram em centro de Itatiba, em São Paulo, onde há projeto para reprodução da ave em cativeiro

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Uma nova família de mergulhãozinhos, filhotes de pato-mergulhão, espécie ameaçada de extinção na natureza, nasceu em São Paulo durante pesquisa para fortalecer geneticamente a ave com ninhada para formação de novos casais. Recolhidos por pesquisadores em dois ninhos de paredão da beira de rio no Parque Estadual Águas do Paraíso, na Chapada dos Veadeiros (GO), os ovos chegaram na semana passada ao Zooparque de Itatiba, único lugar no mundo habilitado para reprodução da ave em cativeiro, depois de uma verdadeira saga da equipe de cientistas para a coleta.

"Os filhotes estão muito bem”, disse o veterinário Alexandre Resende, em entrevista ao Estadão na quarta-feira, 7. Os quatro ovos que descascaram primeiro são do ninho A. Os outros dois, coletados no ninho B, eclodiram depois e também passam bem. Resende, que trouxe os seis ovos da Chapada para terminar a incubação e preparar os nascimentos em Itatiba, é membro da equipe do ICMBio e consultor do Zooparque de Itatiba, a 86 quilômetros de São Paulo.

Em um paredão de pedra junto de um rio, pesquisadores recolhem os ovos: área estava sendo monitorada Foto: Guilherme Yoshi

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Ele explicou que os “pais adotivos” aceitaram bem os filhotes e que os patinhos que nasceram primeiro já estão comendo peixes. De acordo com o veterinário, ainda não é possível saber se há fêmeas entre eles. “Precisamos que cresçam um pouco para fazer a reversão de cloaca e ver o sexo”, afirmou o especialista.

Durante a viagem para São Paulo, Resende controlou o desenvolvimento dos bichinhos em formação ainda dentro dos ovos, chocados com a temperatura artificial até serem colocados em ninho de casal que cuidava de ovos não-férteis. “Este método é o melhor. Os pais adotivos ensinam os filhotes a caçar de forma natural, explicou o veterinário.

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“Dessa forma, eles ganham peso mais rápido, o sistema imunológico é muito melhor”, relatou Resende. “É a primeira vez que temos essa genética do pato-mergulhão da Chapada dos Veadeiros sob cuidados humanos”, festejou. “Vai ser super importante para a variabilidade genética do projeto”, completou o pesquisador.

A pesquisa para a preservação do pato-mergulhão (Mergus Octosetaceus) é parte do Plano de Ação Nacional (PAN) para repovoar a natureza em pelo menos três locais nos quais ainda há registros da presença dessa ave considerada sob ameaça crítica no meio ambiente do Cerrado.

Há hoje somente cerca de 200 indivíduos adultos conhecidos que vivem em regiões do Jalapão, em Tocantins, Serra da Canastra, em Minas Gerais, monitoradas por outras equipes de pesquisadores, e na Chapada dos Veadeiros.

O pato-mergulhão é Embaixador das Águas do Brasil, título que recebeu no 8º Forum Mundial da Água, em 21 de março de 2018, no Ministério do Meio Ambiente. O bicho é considerado um marcador de qualidade ambiental por só existir em áreas de águas claras e puras de rios, cascatas, córregos e lagoas.

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Operação de salvamento ocorreu na Chapada dos Veadeiros

O projeto de salvamento da espécie na Chapada dos Veadeiros acontece em área do Parque Estadual de Águas Lindas, a cerca de 200 quilômetros de Goiânia. É integrado por um time que tem os biólogos Gislaine Disconzi e Fernando Previdente, do Projeto Pato-mergulhão Chapada dos Veadeiros, em conjunto com o veterinário consultor do Zooparque.

Auxiliados por especialistas em canoagem, os cientistas trabalham para ajudar a formar casais de pato-mergulhão de diferentes regiões para, com isso, fortalecer a genética dos filhotes.

"Coletamos seis ovos de dois ninhos na Chapada”, comemorou o veterinário no primeiro depoimento logo que chegou a São Paulo, ainda a caminho de Itatiba. Para alcançar um dos locais da coleta, ele e Previdente desceram, pendurados por cordas, por uma parede de cerca de 30 metros até o ninho que estava num buraco a uma altura de quase 4 metros acima do nível da água. Esse sítio reprodutivo estava sendo monitorado pela equipe de biólogos havia meses.

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Equipe tem de fazer a captura em até 40 minutos Foto: Guilherme Yoshi

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"A gente tem 40 minutos para acessar o ninho quando a mãe deixa o local para se alimentar”, relatou o veterinário, que na retirada dos ovos usa um braço mecânico de plástico duro, com uma mãozinha, para alcançar o fundo do buraco e evitar o toque humano no ninho. A operação tem de terminar antes de a pata retornar do almoço para que ela não abandone os demais ovos que ficam no ninho para serem chocados naturalmente, explica o pesquisador.

O mergulhão parece ser um pato marrento, admitiu o veterinário pesquisador. Ele é diferente de seus primos domesticados de bico chato. O mergulhão tem um bico fino, com “dentinhos”, uma serrilha que facilita a pesca e só vive em água transparente para poder ver o alimento, e é muito arisco.

Mas toda essa “marra” da espécie, descrita em 1817 pelo naturalista e ornitólogo francês Louis Jean Pierre Vieillot, é, na verdade, o comportamento de uma ave que foge do extermínio para ambientes cada vez mais isolados.

Pesquisadores do comportamento desse habitante de água doce contam que no passado ele já existiu em áreas de países como Argentina e Paraguai, e também no sul do Brasil. Eles calculam que hoje haja cerca de 225 indivíduos da espécie nas áreas protegidas brasileiras.

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“Calculamos entre 175 a 225 indivíduos adultos", disse a bióloga Gislaine Disconzi, do Instituto Amada Terra de Inclusão Social, coordenadora do projeto de salvamento. "Costuma-se dizer que no total, incluindo filhotes e jovens, deve haver menos de 250 indivíduos”, detalhou. “Aqui na Chapada estimamos de 30 a 50 indivíduos”, esclareceu.

 Com recursos de entidades como as ONGs que financiam a preservação ambiental, como o fundo The Mohamed Bin Zayed Species Conservation Fund e o Bird Conservation Fund, executado pela Fundação MAIS Cerrado, a bióloga explicou que o mergulhão depende de meio ambiente em equilíbrio.

A pesquisadora ressaltou ainda que a pesquisa conta também com apoio da empresa Blue Stones, que dá suporte ao Programa de Cativeiro, incluindo a saga dos especialistas no interior do País para descobrir e monitorar sítios reprodutivos. “Eles doaram os ducks (caiaques infláveis) com equipamentos de proteção para que pudéssemos realizar o percurso de rio embarcado, metodologia que aplicamos em nossos monitoramentos dos rios da Chapada”, disse a bióloga, acrescentando: “E estamos na busca de novos financiamentos”.

Ovos de pato-mergulhão foram recolhidos de ninho em paredão na Chapada dos Veadeiros Foto: Guilherme Yoshi

Segundo Gislaine, os cientistas estão descobrindo novidades da ecologia da ave. “A espécie está se esvaindo. Estamos vendo isso no trabalho de campo e discutindo também com pesquisadores de outras regiões”, contou em depoimento por telefone ainda na Chapada, acompanhada pelo colega Fernando Previdente, biólogo que faz o mapa da área observada desde 2018.

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O que se sabe, ressaltou ela, é que trata-se de uma ave residente, ou seja, o mergulhão não é tem comportamento migratório, afirmou a cientista, que se dedica à preservação da ave desde 2007.

Foi essa dependência do bicho da existência de água limpa que terminou por transformá-lo num identificador de qualidade ambiental, argumentou a bióloga, autora de tese de mestrado sobre a espécie em 2012. “Onde há mergulhão, como aqui em Águas Lindas de Goiás, é sinal de meio ambiente sob controle, em excelente estado de conservação”, disse Gislaine, lembrando que os cientistas já conseguiram capturar pelo menos um indivíduo para colocação de uma anilha. “A gente planejou até sinal rádio para rastrear, mas é muito caro”, disse.

Na natureza, menos da metade das ninhadas chega até a idade adulta

Com uma mortalidade alta na natureza, onde menos da metade das ninhadas consegue sobreviver até a idade adulta, a espécie está sendo produzida em cativeiro para a preservação. Os cientistas costumam usar até “mães” de outras espécies para chocar os ovos do mergulhão e, com isso, permitir o nascimento no ambiente mais natural possível para os filhotes. Em ninhadas de cativeiro, porém, o sucesso da reprodução chega a 98% desses patinhos especiais, argumentam os pesquisadores.

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Ao nascerem, como esses que estão sendo criados agora em Itatiba, os filhotes são alimentados com ração à base de proteína de peixe. Mas com dois ou três dias de vida já passam a comer peixinhos (alevinos) de até três centímetros oferecidos pelos técnicos do Zooparque.

“Eles são criaturinhas muito sensíveis, mas muito espertos”, argumentou o veterinário do projeto, que já recolheu pelo menos 28 ovos desde 2011, quando iniciou o trabalho com o mergulhão. Há hoje 40 desses patos adultos vivendo em cativeiro.

Nesta fase, os pesquisadores estudam outras maneiras de melhorar a variabilidade genética da espécie. Eles coletam ovos nas regiões naturais - Jalapão e Serra da Canastra, e agora também da Chapada dos Veadeiros - para criar a ave em cativeiro e misturar os bichinhos no mesmo ambiente, aproveitando uma característica da espécie. “O pato-mergulhão é bicho monogâmico, ou seja, forma casais para vida toda”, contou Fernando Previdente.

Ele vigiou casais de mergulhão desde maio acompanhando de longe a formação de ninhos nos paredões nesta temporada de acasalamento. O tempo da reprodução na natureza ocorre entre os meses de maio e agosto. O biólogo contou que a equipe já percorreu mais de 1,5 mil quilômetros de 14 rios na região onde há pelo menos 10 locais em monitoramento.

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Previdente contou ainda que os casais de patos escolhem áreas que chegam a ter de 10 a 12 quilômetros. Um casal não vive na área do outro. Por isso, para encontrar mais reprodutores, os pesquisadores têm de percorrer longos trechos de rio atrás da espécie. Eles são raros também porque a taxa de sobrevivência é baixa, explicou o cientista. Há muitos predadores dos filhotes ainda bebês que saem dos ninhos para os rios e ficam expostos a ataques de peixes grandes e outros animais. “Como as lontras”, disse Previdente.

As ninhadas em geral podem ter até 8 ovos. A postura natural dura de 12 a 13 dias. A fêmea fica nos ninhos chocando por cerca de 30 a 33 dias, 10 dias a mais do que uma ninhada de galinha, por exemplo. Quando a mãe-pata sai para se alimentar, cobre cuidadosamente os ovos com suas plumas para manter a temperatura da incubação. O mergulhão atinge a idade adulta com um ano de vida. Não há dados científicos exatos sobre a idade máxima atingida pelo animal, mas os estudiosos acreditam que ele viva em média 15 anos na natureza. Em cativeiro, pode chegar até 20 anos, como é o caso de um indivíduo que mora em Itatiba.

Previdente ressaltou que a pesquisa científica agora está em uma importante fase. “Nesse momento estamos unindo a reprodução 'in situ', ou seja, na natureza, com a 'ex situ' (fora do lugar), em cativeiro”, ressaltou o biólogo, acrescentando que essa prática é importante para a preservação da espécie.

Mergulhão ganha espaço de proteção no cerrado

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O pato-mergulhão é um dos animais raros do cerrado que os pesquisadores usam para medir a qualidade ambiental. Em 2019, a ciência ganhou um acréscimo da área para o trabalho quando o governo de Goiás criou a unidade de conservação na Chapada dos Veadeiros, o Parque Estadual Águas do Paraíso, acrescentando área de proteção à beira da barragem do Descoberto, perto de Brasília. O parque tem área de 2 mil hectares e fica na região das Cataratas do Rio dos Couros, em Alto Paraíso de Goiás. É a primeira unidade de conservação ambiental do País com modelo compartilhado de gestão entre governo do estado e o município. O mergulhão é uma das espécies protegidas.

Perereca. O programa de preservação do cerrado conta ainda com outros animais que podem sinalizar a qualidade ambiental da região. Um deles é uma perereca de apenas 3,5 centímetros (Pithecopus ayeaye). O minúsculo animal também pode servir como indicador da qualidade da água, assim como o mergulhão. As duas espécies estão criticamente ameaçadas. E são estudadas e acompanhadas por pesquisadores em projetos do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF).

Zooparque tem girafinha

O Zooparque de Itatiba, que desenvolve o programa de proteção do mergulhão, fica numa área de 500 mil m2 de Mata Atlântica. Olocal já está recebendo visitas novamente, obedecendo as medidas de proteção exigidas pelas autoridades contra a covid. Uma das principais atrações é a girafinha Lila, que nasceu no ano passado.

“Estamos trabalhando também com preservação de outras espécies de aves, como o tuiuiu”, disse Camila Piovani, bióloga responsável técnica pelo Zooparque, projeto dirigido por Robert Frank Kooij, que tem autorização para trabalhar com preservação de espécies ameaçadas na natureza.

Durante as visitas, acompanhadas por instrutores do parque, é possível acompanhar o tratamento de animais raros e ver o mergulhão por meio de imagens e vídeos, já que a área de reprodução do pato não é aberta ao público.  De acordo com a bióloga, dos 40 indivíduos da população de mergulhões em cativeiro, 25 são adultos e outros 15 são jovens. Ela ressalta que com um ano os jovens mergulhões já começam a formar os casais. Segundo Camila, a pesquisa com os novos filhotes vai permitir uma troca genética entre os indivíduos de locais diferentes, como o Japalão e Patrocínio, perto da Serra da Canastra, com os da Chapada dos Veadeiros, de Goiás.

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