Enquanto a rara interação entre os pescadores e o grupo de golfinhos-nariz-de-garrafa em Laguna, em Santa Catarina, é um exemplo positivo de cooperação entre espécies, outras formas de relação e práticas humanas ameaçam a sobrevivência da tradição e a saúde das 50 a 60 espécimes que habitam a região.
A extinção desses golfinhos, uma possibilidade diante das mudanças climáticas e do avanço do extrativismo predatório, poderia significar o fim de uma espécie ainda não catalogada cientificamente.
Os golfinhos nariz-de-garrafa, que podem ser vistos em várias áreas do globo, são categorizados como sendo da espécie Tursiops truncatus. Em Laguna, onde são conhecidos como botos-da-tainha, os indivíduos se enquadram na subespécie Tursiops truncatus gephyreus, rara e ameaçada de extinção.
Poucas populações dessa subespécie são conhecidas - de 5 a 7 unidades populacionais, todas ocorrendo entre o sul do Brasil e Argentina, de acordo o biólogo Fábio Daura-Jorge, co-autor do estudo sobre o mutualismo entre cetáceos e humanos observado na praia de Santa Catarina, publicado em novembro do ano passado na revista científica estadunidense Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).
“Somando todas as populações, existiriam, hoje, não mais do que 400 indivíduos, o que seria muito pouco para a conservação”, avalia o pesquisador.
Há ainda um debate na academia que especula que se pode tratar de uma espécie inteiramente nova. “A gente corre o risco de perder a espécie antes de descobrir se é uma espécie diferente. É uma motivação a mais para a gente ter esse viés de conservação”, pondera.
A pesca em volume maior que a população de tainhas pode suportar é uma das ações antrópicas (humanas) que produzem efeitos adversos sobre o comportamento e a vida dos botos-da-tainha, mas não a única.
Um dos problemas mais letais é o bycatch, ou o emalhamento incidental em rede de pesca. O termo se refere àqueles animais que são capturados acidentalmente, mesmo não sendo o alvo da pescaria. “Dependendo do grau de intensidade desses eventos, isso poderia ameaçar a população”, diz Daura-Jorge.
O estudo estima que dois botos, em média, morrem em decorrência do bycatch por ano na região da Laguna. “É um número significativo para uma fonte só de mortalidade, pois é uma população bem pequena para a espécie”, menciona.
Para se ter ideia, uma pesquisa de 2021 da bióloga Carolina Bezamat mostrou que o número de bycatches precisa cair para zero para que essa população de botos consiga sobreviver dentro dos próximos cem anos, o que acende um sinal de alerta para os especialistas.
Contaminação química
A poluição química é outro fator de impacto na saúde física dos botos. Os especialistas já observam que os animais têm adoecido com maior frequência em decorrência da contaminação das águas.
“A qualidade da água local não é boa. A gente está vendo a manifestação de uma série de doenças que ainda não conhecemos muito bem, mas que levam ao aumento da mortalidade”, comenta o especialista.
Uma dessas doenças é a lacaziose, infecção fúngica que causa o aparecimento de lesões na pele. A presença do fungo é porta aberta para outros patógenos e se prolifera no organismo que está com a imunidade baixa, explica Daura-Jorge.
“A presença e prevalência desse fungo na população - a gente vê que a prevalência está crescendo - preocupa, porque pode indicar que alguns indivíduos estão com o sistema imunológico deprimido, e uma das principais causas é a exposição aos químicos em quantidades acima do adequado no meio ambiente.”
Uma das principais fontes de poluição são os produtos usados na produção agrícola, de acordo com o biólogo Maurício Cantor, que também assina o estudo sobre os botos de Laguna.
“Os insumos agrícolas acabam sendo lavados com a chuva e descarregados no sistema estuarino. Isso diminui a qualidade da água e tem gerado outras causas de morte com a redução da qualidade da saúde dos indivíduos”, diz.
Perturbação acústica
O tráfego de embarcações representa mais um problema para a espécie. Durante a pesquisa, que levou cerca de seis anos para ser concluída, os cientistas registraram ocorrências de colisões entre barcos e botos. E não é só nisso que a navegação interfere.
Os golfinhos, exímios comunicadores, são dotados de um refinado sistema de ecolocalização que consegue precisar a localização e características de objetos por meio de emissão de sons e da recepção acústica dos ecos produzidos. A execução dessa função biológica vem sendo prejudicada pela crescente poluição sonora nos oceanos.
Enquanto os barulhos mais intensos fazem com que os animais geralmente abandonem a área, o tráfego de embarcações provoca uma perturbação crônica e constante que, na visão de Daura-Jorge, talvez seja a mais preocupante. Deixa, por exemplo, os animais mais estressados, provoca alterações comportamentais e ainda prejudica as práticas de alimentação.
“É um impacto que a gente não entende muito bem até que ponto pode levar a um evento extremo de morte, mas que, no contexto geral, pode contribuir para doenças ou qualquer processo negativo do indivíduo”, afirma.
“Outro trabalho paralelo sugere inclusive que essa perturbação acústica poderia impactar a própria interação com os com os pescadores. Ela tende a ser interrompida toda vez que passa uma embarcação numa velocidade acima da permitida naquela área.”
Temperatura da água
Já o aumento da temperatura da água - produto do aquecimento global - é uma questão que incide sobre a oferta de alimentos para os golfinhos.
O motivo é que as tainhas, um dos peixes que compõem a base alimentar dos botos, possuem um hábito migratório influenciado pelo calor, como explica Maurício Cantor.
“As tainhas deixam áreas estuarinas do norte da Argentina no inverno, migram para o sul e sudeste do Brasil para se reproduzir e depois entram de volta em estuários como aqueles de Laguna para se alimentar e se reproduzir”, detalha o especialista.
Os cardumes chegam ao litoral catarinense quando o tempo esfria, em busca de águas mais quentes. Ou seja, não houvesse a diferença de temperatura entre as praias, dificilmente esses peixes teriam motivos para aparecer em Laguna.
“A água fria promove essa migração, que é tão importante para esse ciclo reprodutivo da tainha e para as espécies que se alimentam dela, incluindo os humanos. Já temos agora alguma evidência de que águas mais quentes estejam perturbando a migração da tainha e, dessa forma, tornando-a menos disponível tanto para a pesca industrial quanto para a pesca de escala menor e para a pesca de escala micro, com os botos pescadores”, explica Cantor.
Como garantir a sobrevivência dos botos-da-tainha?
O fim da pesca cooperativa com os humanos - outro risco das ações antrópicas - também pode afetar a subsistência dos botos-da-tainha. Isso porque, como mostrou o estudo, os golfinhos que pescam com os humanos se alimentam melhor e têm 13% a mais de chance de sobreviver que os que não se engajam na prática.
Essa relação de mutualismo se ancora em elementos frágeis que dependem de sincronia para se sustentar: o conhecimento dos pescadores e dos botos e as habilidades memorizadas. Qualquer mudança no ambiente e no comportamento de uma das partes pode pôr fim à tradição que, com esses elementos, só foi descrita cientificamente nessa região específica do Brasil.
Por exemplo, se houver menos tainhas na praia de Laguna, os botos terão menos alimento disponível. Não está claro qual seria o efeito disso na prática: se os cetáceos migrariam para outro lugar ou se morreriam de fome. Seja qual for o resultado, está longe de ser positivo.
Os cientistas simularam o cenário de redução da quantidade de tainhas, e a consequência prevista no estudo foi a perda ou diminuição da população dos botos.
É por isso que incentivar a continuidade dessa prática também é uma estratégia de conservação da espécie. “Esse sistema de cooperação ilustra como focar esforços de conservação da diversidade cultural também gera um benefício indireto na preservação biológica”, afirma Maurício Cantor.
Esse sistema de cooperação ilustra como focar esforços de conservação da diversidade cultural também gera um benefício indireto na preservação biológica
Maurício Cantor
Idealmente, diz Maurício, manter a disponibilidade de tainha e outros peixes ao longo do tempo seria a solução ideal para a conservação do boto-da-tainha. “Isso é bastante difícil. Exige não só esforço de campo, mas econômico e político também”, reconhece.
“Uma outra maneira de tentar proteger essa espécie localmente seria direcionando ações de conservação focadas no comportamento do pescador, de baixo para cima, combinada com outras de cima para baixo, reduzindo as causas de mortalidade e a pesca acidental”, sugere.
As práticas de pesca que geram o emalhamento acidental são ilegais, logo, Cantor reforça a importância da fiscalização da área e a apreensão de apetrechos relacionados ao bycatch. “A Polícia Ambiental (de Santa Catarina) tem feito um bom trabalho, mas, se houvesse mais recurso, interesse e tempo em investir mais no monitoramento dessas pescarias ilegais tão prejudiciais, certamente ajudaria a reduzir essa mortalidade”, aponta.
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