Em uma das ruas bem arborizadas do Alto de Pinheiros, o verde, além da sombra, dá a sensação de paz. Mas há ali uma tensão em marcha, uma guerra por espaço e sobrevivência. Os moradores estão bem, a briga é entre as árvores. De um lado, as nativas e as exóticas, do outro as exóticas invasoras - cujo comportamento é parte da segunda maior causa de perda de biodiversidade do planeta, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Toda invasora é exótica, mas nem toda exótica é invasora. Espécies exóticas são aquelas que estão fora de suas áreas naturais. As invasoras também estão fora de seus biomas, mas, sem inimigos naturais, se multiplicam sem controle e ameaçam o equilíbrio ecológico com impactos ambientais e que também podem ser econômicos, sociais e culturais.
Há tempos a Prefeitura de São Paulo se deu conta da beligerância entre elas (não só no bairro nobre da zona oeste), tanto que, em 2019, 700 palmeiras de origem australiana foram retiradas do Parque Trianon pois ameaçavam a flora nativa.
E, no ano passado, o plano de arborização da cidade, aprovado pelo Legislativo paulistano, previa a retirada das invasoras. A ideia foi abortada por uma liminar obtida em maio pelo Ministério Público.
Entre as pré-condições necessárias para a “supressão e o transplante de espécimes de vegetação de porte arbóreo”, estava, de acordo com a lei, a presença de “espécies invasoras e/ou com propagação prejudicial aos biomas existentes no município”. Antes disso, a lei falava em “quando se tratar de espécies invasoras, com propagação prejudicial comprovada.”
Outras alterações que a lei trazia também foram questionados, de acordo com o subprocurador-Geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Wallace Paiva Martins Júnior. “Esse plano de arborização significava um retrocesso na politica municipal em alguns pontos, como a o laudo para a supressão e transplante de árvores ser feito por qualquer pessoa (contratada pelo interessado) e não por servidor público e a revogação da obrigação do prefeito de dar publicidade à poda e corte”, afirma.
Em uma ação direta de inconstitucionalidade, o MP paulista contestou a flexibilidade que poderia levar à dificuldades de reposição da cobertura verde na cidade. A Justiça concedeu uma liminar ao MP e considerou que as alterações na legislação ambiental de São Paulo poderia causar dificuldade ou impedir “a reposição das condições anteriores ao meio ambiente”.
Palmeiras da USP
As ruas de São Paulo têm cerca de 420 mil árvores, de acordo com a Prefeitura, grande parte delas exótica. São imigrantes vindas da América Latina, Europa, África e Ásia. Não há uma estimativa de quantas são invasoras, mas os problemas se estendem.
De acordo com o Inventário da Biodiversidade do Município de São Paulo, a cidade tem um total de 4.768 espécies de plantas, das quais 3.584 são nativas do município e 1.184 são exóticas.
Na Cidade Universitária, na zona oeste, a mesma palmeira retirada do Trianon (Archontophoenix cunninghamii) - conhecida como seafórtia ou palmeira real - é problema. Um bom número delas já foi retirada na década passada, mas ainda podem ser vistas, por exemplo, logo na entrada do campus.
Um novo plano de arborização do câmpus deve ser entregue à Reitoria ainda neste ano e a remoção e troca de mais palmeiras por espécies nativas seria uma das consequências, diz o professor do Departamento de Botânica, do Instituto de Biociências, da Universidade de São Paulo (USP) Marcos Buckeridge, coordenador do Grupo de Trabalho de arborização da USP.
A liminar do MP, no entanto, colocou em dúvida a possibilidade de retirada das espécies exóticas. “Fizemos um pleito na Secretaria do Verde para que a USP possa manejar suas próprias árvores sem ter de passar pela Prefeitura porque temos nossos especialistas”, afirma. “Se fosse só a seafórtia já causaria um estrago, mas há outras espécies no campus.”
O professor da USP explica que a presença dessas espécies é pior em florestas do que nas ruas. “Na floresta em frente ao Instituto de Biociências ela entrou, se espalhou e foi crescendo causando a destruição de outras espécies”, afirma.
Para o botânico Ricardo Cardim, é preciso lembrar que as espécies invasoras nas ruas podem ser fonte de dispersão de sementes que chegam a outros lugares. “Há passarinhos ‘generalistas’ que comem qualquer fruto e saem levando as sementes para qualquer lugar, até para uma floresta”, afirma.
Xenofobia vegetal?
A história das plantas exóticas no Brasil se confunde com a própria história do País. Uma das mais conhecidas palmeiras, a imperial, se tornou símbolo da realeza e sua introdução em terras brasileiras é muitas vezes creditada à chegada da Família Imperial ao Rio de Janeiro, em 1808. A Roystonea oleraceae é encontrada hoje em praticamente todo o Brasil, mas sua origem é o Caribe.
Essa é a espécie imponente que se vê ao entrar no Jardim Botânico do Rio. Naquela época, nos jardins botânicos da Europa, o cultivo de espécies exóticas ornamentais e de espécies exóticas com interesse econômico era comum. Por aqui, com o processo de “modernização” que a chegada da Família Imperial parecia impor não era diferente.
Em São Paulo, como no resto do País, convivem espécies das mais diversas origens. As tipuanas são algumas das mais comuns. Originária da Bolívia e da Argentina, a árvore é quase um símbolo da cobertura verde das ruas paulistanas e foram introduzidas na cidade a partir do início do século passado pela Companhia City - responsável pela urbanização de bairros como a Lapa e o Pacaembu.
Mas não só ela. Nativa do sudeste asiático, o ficus (Ficus benjamina) também é presença constante na cidade em que chegou no final do século passado e passou a ser plantada em grande quantidade. A mesma origem tem o resedá (Lagerstroemia indica L.), árvore que não passa de seis metros de altura e costuma espalhar suas flores rosas pelas calçadas.
“Há um predomínio das espécies exóticas, principalmente, no paisagismo. Até hoje, cerca de 90% das espécies usadas em paisagismo no município são estrangeiras”, diz o botânico Ricardo Cardim, que se dedica às árvores da cidade.
“Isso se deve a fatores culturais e mercadológicos. As pessoas acabam aceitando essas espécies produzidas na Europa e nos Estados Unidos, o mercado importa essa plantas, e consomem sem saber se são nativas ou de fora. Não há o entendimento da importância do resgate da vegetação nativa como fator de brasilidade e sustentabilidade dentro do paisagismo. As pessoas acabam se desconectando completamente da vegetação nativa e só tendo espécies estrangeiras em casa.”
Cardim faz questão de reforçar que mesmo assim não é o caso de retirar essas espécies da cidade. “Ninguém vai sair cortando as árvores estrangeiras da cidade porque isso irá criar um deserto. Elas fazem serviços ambientais básicos como qualquer árvore. O que defendo é que haja uma redução das espécies exóticas invasoras”, afirma.
Para Buckeridge, as espécies exóticas não invasoras nas ruas da cidade, assim como as nativas, têm um efeito educacional. “É como um grande jardim botânico em que você pode ter contato e conhecer árvores de outros lugares do mundo”, diz.
O professor da USP afirma que é preciso não criar um sentimento de repulsa às essas espécies. “O Pau Brasil, por exemplo, é nativo da Mata Atlântica, mas não de São Paulo. E aí, vamos sair cortando também?”, afirma.
Política pública
A Prefeitura de São Paulo afirma que a liminar da Justiça suspendeu apenas parte do texto retirando a expressão “e/ou” do seguinte trecho: “quando se tratar de espécies invasoras e/ou com propagação prejudicial aos biomas existentes no Município”. Segundo ela, “dessa forma, ela não veta as autorizações de cortes de espécies exóticas invasoras, cuja propagação é prejudicial.”
Em nota, por meio da Secretaria do Verde e Meio Ambiente (SVMA), afirma que “a liminar em si não interfere na política pública regida pelo Plano Municipal de Arborização Urbana (PMAU), uma vez que o próprio Plano em sua Ação 02 já prevê a revisão da legislação que trata das espécies exóticas invasoras, visando a elaboração de plano de manejo para a erradicação destas espécies e sua substituição, considerando o paisagismo local, a alimentação para fauna e a tipologia da área em que se encontram.”
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