Por que falar só em ‘cidade-esponja’ não é suficiente para evitar desastres

Analisar toda a bacia hidrográfica, não só o centro urbano, pode aumentar o potencial de mitigação dos efeitos dos eventos climáticos extremos, como o do Rio Grande do Sul

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Foto do author Gonçalo Junior
Atualização:

O conceito de cidades-esponja, criação chinesa que aumenta a capacidade de absorção da água das chuvas a partir de soluções baseadas na natureza, deve ser ampliado, englobando as zonas rurais, as encostas e nascentes dos rios. Analisar toda a bacia hidrográfica, não só o centro urbano, aumenta o potencial do projeto de minimizar os efeitos dos eventos climáticos extremos, como o do Rio Grande do Sul.

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Essa ampliação do conceito também vem da China. Os pesquisadores da Universidade de Pequim Xiao Peng, Xianpei Heng, Qing Li, Jianxia Li e Kongjian Yu, considerado um dos pais das cidades-esponja, afirmam que pode ser ineficiente modificar apenas os centros urbanos porque as chuvas são cada vez mais volumosas.

Por isso, defendem que é preciso restaurar a capacidade de absorção da água em toda a bacia hidrográfica no artigo “De Cidades Esponja para Bacias Hidrográficas Esponja”, publicado na revista científica Water. Em suas entrevistas mais recentes, Kongjian Yu vem utilizando o termo “planeta-esponja”.

A ideia vem ganhando apoio ao redor do mundo, inclusive no Brasil. “O conceito começou como cidade, mas para funcionar tem de se pensar como uma bacia, das nascentes aos maiores rios e orlas”, diz Paulo Pellegrino, professor sênior da Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

Essa é a mesma visão da bióloga Leila Teresinha Maranho, professora de pós-graduação em Ecologia e Conservação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “A cidade-esponja tem de considerar a área urbana e rural, respeitando as áreas de APP (preservação permanente) ao longo de toda a bacia, nascentes e córregos”.

Mesmo com as particularidades da bacia chinesa onde os estudos foram realizados, o raciocínio pode ser estendido ao Rio Grande do Sul. A cidade de Porto Alegre convive com o Lago Guaíba, formado pelo conjunto hídrico do sistema Jacuí/Taquari/Antas.

Águas do Guaíba tomaram o centro de Porto Alegre durante enchente Foto: Diego Vara/Reuters - 15/5/2024

O engenheiro florestal Osvaldo Ferreira Valente, professor aposentado da Universidade Federal de Viçosa, explica que só a bacia do Taquari/Antas tem uma área de coleta de chuvas de 26.482 km², o equivalente a 4 mil campos de futebol.

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Analisando a declividade da região - das cabeceiras até o Rio Tainhas, as altitudes variam de 1.000 a 700 metros por exemplo -, o professor afirma que essa conformação leva a uma rápida concentração das enxurradas nas partes mais altas que acabam inundando os vales das partes mais baixas. “Por isso, é fundamental que a esponja seja muito eficiente desde as cabeceiras”, concluiu.

Água escoa do Guaíba para dentro da cidade no início da enchente que atingiu Porto Alegre em maio Foto: Lauro Alves/Secom-RS - 3/5/2024

“Defensor do conceito de bacia-esponja”, em suas próprias palavras, o engenheiro ambiental João Guimarães usa outro exemplo. “Porto Alegre é a ponta do funil de uma região gigantesca, com vários rios desaguando no Guaíba. A adaptação das cidades às mudanças climáticas passa por uma visão mais regional, distribuindo a absorção de impacto por toda a bacia”, diz o diretor da consultoria Aquaflora Meio Ambiente que hoje vive em Portugal e atua em projetos no Brasil e na Europa.

  • Expandir o conceito de cidade-esponja para outras regiões significa, por exemplo, conter ou reverter o desmatamento nas encostas, restaurar as matas ciliares, aquelas à beira do rio, manter a cobertura vegetal das encostas e topos de morro, recompor as planícies de inundação, que são grandes esponjas naturais, além de adotar mais práticas de conservação de solo nas áreas agrícolas.

Leila Maranho atua como consultora do projeto “Reserva Hídrica do Iguaçu”, iniciativa voltada para a recuperação ambiental em uma faixa de cerca de 150 quilômetros no Paraná. O objetivo é implementar novas tecnologias, incluindo as soluções baseadas na natureza.

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Ela conta que o projeto começa fora das áreas urbanas. “Nós começamos esse projeto numa região de serra. Teremos mais vegetação na tentativa de criar mais áreas de conservação.”

As soluções baseadas na natureza são projetos de bioengenharia que enfrentam desafios socioambientais com processos inspirados nos ecossistemas naturais. Jardins de chuva, parques lineares e restauração de encostas são ações preventivas que mimetizam a natureza e ajudam a tornar as cidades menos vulneráveis às mudanças climáticas.

As cidades-esponja reúnem um conjunto dessas soluções, mas não se trata de começar tudo do zero, dizem os especialistas. O objetivo é combinar a infraestrutura verde (parques e reservas naturais) e as soluções da engenharia tradicional como a construção de diques e represas e a instalação de tubulações de drenagem (infraestrutura cinza).

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“Não precisa ser um ou outro. Não precisamos jogar fora tudo o que já foi feito. Quando pensamos num novo empreendimento ou num novo parque, porque não usar técnicas para absorver, reter e deter as águas?”, provoca Pellegrino.

Três estratégias para absorver mais as águas

Kongjian Yu afirma que é preciso parar de “lutar contra a água”. Foi assim que ele se expressou por meio de videoconferência em evento sobre segurança hídrica da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), em abril. O princípio é o mesmo de uma esponja doméstica: absorver as águas a partir de três grandes estratégias.

  • A primeira é a contenção da água assim que ela toca o solo por meio de grandes áreas permeáveis, porosas, não pavimentadas. A cidade deve conter a chuva com lagos artificiais e açudes alimentados naturalmente ou por canos que ajudam a escoar a água de rios e represas. Telhados e fachadas verdes também ajudam.
  • O segundo ponto é desacelerar o fluxo d’água. Em vez da canalização dos rios, que acelera a velocidade da água, com maior tendência a transbordar, a ideia é renaturalizar o curso d’água. Isso significa restituir a área de planície de inundação, com parques ou margens não ocupadas. Isso não é fácil de fazer, reconhece Guimarães. Como alternativa, ele sugere o uso de pisos mais permeáveis para “fazer com que mais água permaneça por mais tempo na planície de inundação”.
  • A terceira estratégia é adaptar as cidades para que elas tenham áreas alagáveis, para onde a água possa escorrer sem causar destruição, com soluções baseadas na natureza.

Resgate das condições naturais

Renaturalizar, resgatar e retomar são palavras que apareceram bastante ao longo das entrevistas. Não é por acaso. Na China, o projeto busca resgatar tradições milenares; no Brasil, é um regresso às condições naturais antes da pavimentação. “São Paulo já foi uma cidade-esponja”, diz Pellegrino.

Em sua argumentação, o professor cita o quadro Inundação da Várzea do Carmo, do pintor Benedito Calixto (1853-1927). No final do século dezenove e início do século vinte, ele retrata uma enchente da várzea do Carmo após a cheia do rio Tamanduateí. “O quadro mostra o mercado funcionando e a água em seu espaço. Nas décadas seguintes, começamos a tentar secar a cidade, canalizar os rios, cortar a vegetação e drenar as várzeas, impermeabilizando as superfícies. Perdemos a ‘esponjice’ de São Paulo”, diz.

Críticas às experiências chinesas

Em 2015, o presidente chinês, Xi Jinping, inaugurou oficialmente o “Programa Cidade-Esponja”, com a consultoria de Yu. Lá, a intenção foi incentivar as cidades a adotar uma, o que resultou na construção de centenas de “parques-esponja”. O conceito já foi aplicado também na Tailândia, Indonésia e Rússia. Outros arquitetos também já utilizam o conceito.

O modelo, no entanto, vem recebendo críticas. Com tempestades cada vez mais fortes, especialistas questionam se as cidades-esponja serão capazes de conter grandes inundações. Depois de receber 60 bilhões de yuans (cerca de R$ 42 bilhões) de investimentos para implantar o conceito, a cidade de Zhengzhou, na província de Henan, foi castigada por uma das chuvas mais fortes da sua história em 2021.

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As ruas ficaram inundadas e mais de 70 pessoas morreram. Yu afirma que essas falhas foram causadas pela execução inadequada ou fragmentada do projeto pelas autoridades locais.

André Ferretti, gerente de economia da biodiversidade da Fundação Grupo Boticário e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), explica que as cidades-esponja estão ligadas principalmente a regiões sujeitas a grandes inundações.

“Outras regiões que estão sujeitas a outros riscos como deslizamento de terra, seca e incêndios, não vão conseguir resolver seus problemas com o conceito de cidades-esponja”, avalia.

Além da falta de indicadores de monitoramento com resultados contundentes sobre sua efetividade, especialistas apontam outras barreiras para a adoção do conceito na realidade nacional. Entre eles estão o pensamento de curto prazo das gestões públicas e a falta de processos públicos de licitação que abracem as soluções baseadas na natureza.

Também há impactos sociais, o que destaca a necessidade de integração da adaptação climática e valorização da biodiversidade às políticas de habitação e mobilidade. “Em alguns locais, o ideal seria realocar as populações, o que exige um programa de habitação bastante robusto. Uma solução bem-vinda não pode causar outro problema”.

Mas a discussão não está apenas na área de gestão pública. Faz parte da ação individual, explica Leila Maranho. “As pessoas estão impermeabilizando até os jardins”, alerta.

Yu defende ainda que os próprios moradores podem usar seus jardins, terraços e telhados como “esponjas” para ajudar a absorver a água das chuvas. Essa é a mesma visão de Ferretti. “Pessoas que estão construindo suas casas podem utilizar várias categorias de soluções”, diz. Obviamente isso não soluciona o problema, mas começa a criar uma rede, mitigando as consequências.

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