O Ministério dos Transportes deve concluir até o fim deste mês a proposta para a pavimentação da Rodovia BR-319, que corta a área mais bem preservada da Floresta Amazônica, ligando Porto Velho a Manaus. Ambientalistas dizem que o asfaltamento da estrada pode aumentar a destruição do bioma, impedindo o País de cumprir a meta de desmatamento zero até 2030, enquanto defensores do projeto ressaltam a importância da ligação terrestre com um “modelo contemporâneo”.
- Com 877,4 quilômetros de extensão, a BR-319 corta a Amazônia diagonalmente, ligando a capital de Rondônia à do Amazonas.
- A estrada margeia ou atravessa 42 unidades de conservação ambiental, 69 reservas indígenas e mais de seis milhões de hectares de terras públicas.
- É a única ligação por terra de Manaus para o restante do País.
Atualmente, apenas cerca de 200 quilômetros (no início e no fim da via) são asfaltados. O longo trecho central da estrada que passa por dentro da floresta é de terra batida e costuma ficar intransitável no período de chuva.
A pavimentação, segundo os ambientalistas, facilitaria o acesso de grileiros, madeireiros e mineradores a uma região praticamente intocada da mata.
Estudo publicado na Environmental Monitoring and Assessment, assinado por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), revela que a reconstrução da BR-319 aumentaria o desmatamento ao longo da rodovia e também nas estradas vicinais conectadas à BR-319 em 60% até 2100, em relação ao desmatamento no cenário projetado sem a reconstrução.
“Trata-se de região crítica para a preservação da floresta e, ao mesmo tempo, vulnerável, com muitas terras públicas não destinadas”, explicou ao Estadão o cientista Philip Martin Fearnside, do Inpa, principal autor do trabalho.
“Os grileiros estão esperando a construção dessa estrada, fazem grande lobby por isso, é importante termos um modelo matemático que mostre o enorme impacto da obra”, disse o biólogo, que fez parte do painel da Organização das Nações Unidas (ONU) que ganhou o Nobel em 2007 por alertar sobre a crise climática.
Ainda segundo Fearnside, os resultados do estudo refletem a contribuição da abertura de estradas para o avanço da fronteira agrícola na Amazônia.
“A estrada pavimentada vai servir para levar todos os desmatadores hoje concentrados no Arco do Desmatamento a migrar para o interior da floresta”, afirmou.
Nota técnica assinada por Juliana Leroy e Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e hoje na Diretoria de Controle do Desmatamento e Queimadas do Ministério do Meio Ambiente, indica um cenário semelhante.
De acordo com as projeções dos pesquisadores, o asfaltamento da rodovia levaria, até 2050, a um “desmatamento acumulado de 170 mil quilômetros quadrados, quatro vezes mais do que o projetado com a média história da região”, ou seja, sem o asfaltamento.
Do ponto de vista climático, um aumento do desmate da Amazônia dessas proporções teria impacto significativo nos chamados “rios voadores” – imensos volumes de vapor de água que vêm do Oceano Atlântico, ganham corpo na Amazônia e seguem para os Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo e, algumas vezes, até o Sul.
“Não temos mais margem de segurança para perder água da Amazônia nos rios voadores que são essenciais para o abastecimento de água das grandes cidades do Brasil e também do agronegócio”, disse Fernside. “Esse é o último lugar onde a água é reciclada pela floresta e levada para o resto do País.”
Outro problema levantado pelos especialistas é o risco do crescimento das doenças infecciosas transmitidas dos animais para humanos, as zoonoses. Áreas de floresta fechada costumam guardar patógenos com os quais os seres humanos jamais tiveram contato, com o risco de deflagração de novas epidemias.
Acesso
Professor de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Augusto Rocha diz que a discussão é conduzida de forma superficial e polarizada. Ele lembra que a rodovia é o único acesso terrestre a Manaus e que a ausência do Estado em uma região intocada também abre espaço para atividades ilegais.
“Não se trata de fazer uma rodovia a qualquer custo, cometendo os mesmos erros cometidos na Transamazônica, sem salvaguardas ambientais. Mas tampouco devemos deixar a floresta completamente intocada. Temos de enfrentar o assunto tecnicamente”, afirma.
“Precisamos de um modelo contemporâneo de rodovia, precisamos mostrar para o mundo como fazer uma rodovia sustentável. Temos conhecimento técnico e tecnologia para isso. É inconcebível fazer uma estrada como fazíamos nos anos 1970, mas também é inconcebível não desenvolver a região. Precisamos respeitar a floresta, mas usar os seus recursos.”
Estrada-parque
O Ministério dos Transportes informou que pasta está trabalhando com o conceito de estrada-parque, o que preservaria a floresta e das comunidades locais.
- A via teria barreiras laterais de até quatro metros de altura, com poucos acessos à mata, e apenas com passagens para os animais.
- Além disso, teria ao menos três portais de monitoramento.
- Outras medidas são estudadas, como proibir o trânsito de caminhões levando madeira não certificada, por exemplo, ou maquinário pesado usada para o desmate.
“A pauta ambiental é essencial, mas a realidade da região também”, disse o subsecretário de sustentabilidade da pasta, Cloves Benevides.
“A realidade da região hoje é a necessidade de ligação entre os dois Estados e o fato de que a estrada, mesmo sem asfalto, já tem fluxo expressivo de veículos. O desmatamento é algo que já está acontecendo.”
Segundo Benevides, é preciso ter governança funcional para toda a região da estrada. “Sem essa governança, os problemas tendem a aumentar de qualquer maneira”, afirmou.
“Esse é um empreendimento único, que precisa nascer com todas as garantias de sustentabilidade e monitoramento de forma integrada.”
A obra precisa do sinal verde do Ministério do Meio Ambiente (MMA) para sair do papel. “Não sou contra nem a favor da estrada, não entro nesse mérito”, afirmou o secretário de Controle de Desmatamento da pasta, André Lima.
“Mas qualquer obra de infraestrutura, seja da iniciativa privada ou do governo, precisa estar alinhada com a meta do desmatamento zero (até 2030) colocada pelo presidente da república”, afirmou.
A gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem afirmado que a defesa ambiental será uma das bandeiras do seu governo. O setor é alvo de grande atenção internacional, diante do papel-chave da Amazônia para frear a crise climática.
“Seja lá qual for a obra, precisamos saber se as ações previstas são convergentes com essa meta”, acrescentou Lima.
Nesta gestão, a expectativa de liberação grandes obras ou empreendimentos tem elevado a pressão sobre o Ministério do Meio Ambiente. Um dos casos de maior repercussão é o plano de exploração de petróleo na Margem Equatorial da Foz do Amazonas, ainda em estudo pela área técnica da pasta.
Estudo divulgado na semana passada pela ONG Transparência Internacional indicou ainda um outro problema: pouca transparência na execução de contratos e riscos socioambientais da pavimentação da BR-319.
Foram identificadas ausência de consultas livres, prévias e informadas à população impactada; fragilidade de informações sobre a execução dos contratos; e falta de informação ampla sobre o licenciamento ambiental.
A coordenadora da Federação e Organização das Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp), Sandra Batista do Amaral, confirmou em entrevista à agência de notícias Amazônia Real que os indígenas não foram consultados sobre o projeto da BR-319.
A consulta prévia é um dos direitos fundamentais dos povos indígenas, de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“Nós já fizemos uma primeira reunião com a Funai, cujo objetivo era determinar quais são as terras indígenas afetadas”, contou Cloves Benevides. “Na próxima etapa, vamos ouvi-los certamente, esse é um compromisso previsto no projeto.”
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