Enquanto enxurradas e deslizamentos devastaram rapidamente a Região dos Vales e a Serra Gaúcha, as enchentes avançaram de forma gradual até Porto Alegre, há pouco mais de um mês. A capital do Rio Grande do Sul é um exemplo de local que poderia ter sofrido menos impactos se tivesse tomado medidas de prevenção, principalmente de manutenção e melhoria do sistema antienchentes, criado nos anos 1970.
A prefeitura da capital estima prejuízo de R$ 6 bilhões a R$ 8 bilhões para o município, dentre arrecadação e reconstrução, sem contar o impacto privado. A gestão Sebastião Melo (MDB) tem admitido falhas na proteção contra enchentes, mas diz que foram feitas melhorias, além de citar um histórico de problemas na rede e aponta ter contrato permanente de manutenção. Também anunciou R$ 500 milhões para a recuperação do sistema.
“Todas as manutenções estavam em dia; temos relatórios específicos”, diz o diretor-geral do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), Mauricio Loss. Ele menciona que esse tipo de sistema precisa de reparos frequentes, tanto que foram atendidos 768 chamados no ano passado para manutenção eletromecânica, desde troca de óleo até queima de motor.
Além disso, afirma que outra fase de obras precisará envolver uma revisão do que seriam problemas do projeto do sistema, como a altura de parte das casas de bombas (que foram inundadas na enchente).
“O sistema conseguiu conter o avanço das águas. Justamente por isso deu tempo para as pessoas saírem de casa. Não tivemos morte por afogamento ou rompimento de dique. O sistema protegeu a cidade para salvar vidas. Apresentou falhas sim. E vamos proceder os reparos necessários para devolver a segurança a Porto Alegre”, continua.
Problemas nas casas de bombas, muros e diques eram conhecidos havia anos. E existia até estimativa de quanto seria preciso para eliminá-los. Levantamento de um consultor feito no ano passado apontava que R$ 400 milhões eram necessários para recuperar as estações de bombeamento.
O valor é semelhante ao previsto pela prefeitura para reconstruir o sistema. Ou seja, cerca de 5% do prejuízo total estimado pela prefeitura até agora.
Segundo especialistas, uma reforma do sistema poderia ter evitado grande parte dos impactos em Porto Alegre. Não todos, contudo, pois a altura atual de parte dos diques e o fato de a rede de proteção não abranger toda a área ribeirinha deixam vulneráveis as ilhas e bairros das zonas norte e sul, por exemplo.
“O desempenho do sistema contra cheias de Porto Alegre foi, infelizmente, insuficiente para proteger a cidade da cheia. Em função das falhas, a cidade foi inundando, o que, a rigor, não deveria ter acontecido”, diz Fernando Mainardi Fan, professor do Instituto de Pesquisas Hidrológicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “O sistema deve ser restabelecido o quanto antes, dada a possibilidade de ocorrências de novas cheias no futuro próximo.”
Ele pondera que outras áreas da cidade não são abrangidas pelo sistema de diques (barreiras), muro e casas de bombeamento — o que deveria ser rediscutido agora. “Tudo isso deve ser incluído em um plano de reconstrução e reconstituição do sistema.”
Também hidrólogo, consultor e professor aposentado da UFRGS, Carlos Tucci foi responsável pelo levantamento de que R$ 400 milhões resolveriam parte do problema das casas de bomba. “Atrasou um pouco (o avanço da inundação), mas ocorreu”, diz. “Foi próximo do que ocorreria se não tivesse.”
A rede antienchente inclui cerca de 68 quilômetros de diques (barreiras, como vilas elevadas), comportas e muro, além de casas de bombeamento. Ao todo, abrange a zona norte (também afetada pelo Rio Gravataí), o centro histórico e parte da zona sul — o restante dessa região e as ilhas não têm essa defesa.
A proteção foi construída no início dos anos 1970, pelo extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), com novas casas de bombas criadas ao longo de décadas. Nos anos 1990, passou para a responsabilidade do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) de Porto Alegre, o qual foi extinto (sob críticas) em 2019. Hoje, é ligado ao Dmae.
No Plano de Metas atual da prefeitura, consta que o sistema operava em 85% da capacidade no início da gestão, em 2020, e seguia nessa média no ano passado. “A ampliação dessa meta representaria esforços antieconômicos de baixa repercussão na eficiência”, justificava a gestão Melo no documento.
Nas últimas décadas, em várias ocasiões, cogitou-se derrubar o muro, inclusive pelo histórico de décadas sem cheias tão expressivas. Isso porque, após 1967, outros casos perto ou acima da cota de inundação ocorreram apenas em 2015, em 2023 (duas vezes, em setembro e novembro) e neste ano.
“(O sistema) Era como um seguro, que um dia iria acontecer, só não se sabia quando”, afirma Tucci. “O projeto também não era completo, com defeitos, e a manutenção foi negligenciada por todos esses mandatos. Um somatório de problemas ao longo do tempo, que deixou a cidade desprevenida.”
Como o Estadão mostrou, prevenir custa mais barato do que reparar estragos pós-desastre: estudos estimam retorno de cerca de US$ 4 para cada US$ 1 investido em obras de infraestruturas mais resilientes, por exemplo.
Agora, diante do colapso do sistema contra cheias portoalegrense, Tucci propõe quatro etapas de ações para que não haja novas inundações. As medidas vão de reconstruir redes de bombeamento impactadas a criar um sistema de monitoramento, alerta e previsão de cheias em tempo real.
Referência internacional na área, ele é diretor de hidrologia da Rhama Analysis, consultoria que tem feito os mapas de previsão de inundação na capital gaúcha em força-tarefa conjunta com o IPH/UFRGS.
As quatro etapas são:
- Inspeção e diagnóstico: avaliar a estrutura antienchentes e verificar a topografia, a fim de identificar problemas pré-existentes e causados pela cheia, assim como mudanças básicas necessárias;
- Anteprojeto de recuperação: apresentar propostas de recuperação do sistema antienchentes, com melhorias mais simples, como eventual alteamento de parte dos diques (barreiras de contenção), por exemplo;
- Estudo de modernização: apresentar propostas de melhorias ao sistema antienchentes, o que pode envolver mudanças mais estruturais e tecnológicas;
- Proposta de Plano de Contingência e Emergência: orientações para procedimentos, comunicação e tomada de decisões em eventos extremos.
O hidrólogo estima que só recuperar as estações de bombeamento e outras medidas básicas da primeira etapa possam chegar a cerca de R$ 500 milhões. Ações adicionais envolvem investimento maior.
Em bairros urbanizados não contemplados pelo sistema, na zona sul, é possível discutir a criação de novos diques. Além disso, cita outra medida que deveria ser tomada não só no Rio Grande do Sul, mas nacionalmente: monitoramento e previsão de risco hidrológico.
Esse tipo de monitoramento e alerta seria feito a partir de dados topográficos (como de quais são áreas mais baixas e altas) e de previsão do tempo. A adoção desse tipo de tecnologia permitiria simulações dos efeitos da chuva, do vento e da elevação de outros corpos d’água nas cidades.
Dessa forma, seria possível prever com mais precisão possíveis locais impactados, de modo a direcionar decisões do poder público, como de alertas de evacuação. “O Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, órgão do governo federal) prevê chuva, não nível e vazão. Falta completar com a parte do solo, do nível dos rios”, explica.
O sistema foi criado após a enchente de 1941, a maior da cidade até este ano, quando o Guaíba chegou a 4,75m. Desta vez, aproximou-se dos 5,35m. Embora ambos ligados ao El Niño, os casos ocorreram de modo distinto, o que sugere elo com a crise climática. “O aumento da temperatura do planeta causa eventos de maior intensidade e em menor intervalo de tempo”, diz Tucci.
Soluções não são universais e dependem da característica de cada região
Tucci explica que as possíveis medidas para evitar e se proteger de novas enchentes extremas variam conforme as características de cada local. Soluções para a região metropolitana não são as mesmas do que as sugeridas para o interior, por exemplo.
Ele analisa que os problemas na Grande Porto Alegre poderiam ser mitigados e evitados com sistemas antienchentes eficazes. Se o da capital falhou, os de outras cidades tinham proteções abaixo do nível de elevação dos rios neste evento extremo (como em Canoas, uma das mais afetadas). Além disso, parte dos municípios sequer tem essa proteção (como Eldorado do Sul, quase todo submerso).
Em geral, o consultor também fala em estudos de bacias, de modo a indicar intervenções de drenagem para além das zonas ribeirinhas. “Divide em diversas sub bacias para controle de escoamento”, comenta.
Na Grande Porto Alegre, a cheia esteve ligada especialmente ao alto volume de precipitação no entorno de grandes rios que deságuam na região (como Jacuí, Taquari, dos Sinos e Caí). No centro da capital, as águas chegam em um estreito de cerca de 900 m, com represamento ainda maior por influência do vento sul.
Além disso, explica que esse tipo de proteção não é indicado para o Vale do Taquari, por exemplo, onde as cheias devastaram cidades como Lajeado, Arroio do Meio e Cruzeiro do Sul. Como o Estadão mostrou, alguns municípios até estudam mudar de local após as cheias deste ano e de 2023.
“É outro cenário. Lá, não tem como fazer a obra, porque a bacia é grande e a velocidade é alta. Não tem como fazer reservatório ou dique, custaria uma fortuna”, compara. Nesse caso e no de locais com histórico de deslizamentos (como em parte da Serra Gaúcha), diz que medidas mais indicadas envolvem sistemas de previsão e alerta hidrológico, assim como o zoneamento de áreas de risco (com restrições de ocupação) e o reassentamento de parte da população.
Ele reitera, contudo, que ações para transformar as cidades em “esponjas”, com técnicas que permitem maior absorção da água da chuva não evitariam uma situação como a de Porto Alegre. Esse tipo de medida seria mais voltada a alagamentos (por chuva) do que para grandes cheias.
Segundo a Defesa Civil, mais de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas pelas enchentes, a enxurrada e os deslizamentos em 476 dos 497 municípios gaúchos. Mais de 600 mil pessoas ficaram desalojadas ou desabrigadas.
Em Porto Alegre, a prefeitura estima ao menos 157,7 mil diretamente afetados. O balanço aponta 39,4 mil edificações inundadas e impacto a 45,9 mil empresas. No ensino, 60 escolas públicas e 100 privadas foram atingidas, enquanto 31 espaços de saúde sofreram consequências diretas do desastre ambiental.
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