BRASÍLIA- Após a posse do presidente Donald Trump, os Estados Unidos anunciaram que vão deixar o Acordo de Paris, tratado global para conter o aquecimento global. Embora não tenha sido surpresa, a saída da maior economia do mundo traz consequências para a Cúpula do Clima da ONU (COP-30), que será realizada em novembro em Belém.
Uma delas, na opinião do presidente da COP-30, embaixador André Corrêa do Lago, é justamente a ascensão de países em desenvolvimento ou outras forças, como a China, na liderança das negociações. Em entrevista ao Estadão, ele afirma que Pequim tem contribuído para o combate à crise climática, principalmente, com soluções tecnológicas.
“A redução, por exemplo, do custo de uma placa solar graças à China, é um elemento de cooperação internacional extraordinário. Ficou mais barato para a África adotar energia solar graças à China”, cita. Embora sejam os maiores emissores de gases de efeito estufa do planeta, ele diz que os chineses estão “antecipando vários dos seus objetivos climáticos em vários anos, ou seja, avançando mais rápido do que a gente imagina.”
Por outro lado, o gigante asiático ainda move sua economia à base da queima de combustíveis fósseis (principal causa do aquecimento global) e era dona de dois terços das novas usinas de carvão em operação no mundo em 2023. A meta proposta pela China é de neutralidade de emissões até 2060, mas antes disso prevê subir a poluição atmosférica a um pico em 2030 - enquanto cientistas acreditam que a crise climática está mais veloz.
A COP este ano deverá rever as metas de redução de emissão de gases assumidas no âmbito do Acordo de Paris. Mas não só. Tema herdado da cúpula no Azerbaijão, a viabilização do financiamento climático também estará na pauta.
Há uma queda de braço entre países em desenvolvimento e ricos, que têm defendido aumentar o número de doadores que bancarão a adaptação para a nova realidade climática, como a transição energética ou obras contra desastres naturais.
Essa lista maior incluiria nações emergentes, o que é rechaçado pelo Brasil. “Os países desenvolvidos querem é diminuir a sua conta”, critica o chefe da COP-30.
Além do impasse internacional, Corrêa do Lago terá de lidar com incoerências do próprio governo, como a posição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a favor de explorar novas frentes de petróleo na Margem Equatorial da Foz do Amazonas. “Todos os países enfrentam alguma forma de contradição no combate à mudança do clima”.
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A postura contraria o compromisso assumido pelo país na COP-28, nos Emirados Árabes, quando em consenso com outras nações concordou com a transição rumo ao fim do uso de combustíveis fósseis. “Cada país deve encontrar o seu próprio caminho para adaptar a sua economia às necessidades da mudança do clima”, diz.
Sobre a crise das queimadas, que bateram recorde em 2024, ele afirma que episódios como o de Los Angeles este mês mostram ao mundo a dificuldade de frear o fogo diante da nova realidade climática. “Esses incêndios se alastram mais rápido e de forma mais significativa.”
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
A Cop-30 tem como mandato rever o que foi definido no Acordo de Paris e traçar novas metas. Como a saída dos Estados Unidos afeta o principal objetivo desta conferência?
A saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris tem impacto grande porque, na realidade, o acordo foi criado para trazer os Estados Unidos de volta à negociação de clima. Os Estados Unidos nunca tinham entrado em Kyoto. Eles negociaram o Protocolo de Kyoto, mas uma vez negociado, o Senado americano votou que não aprovaria um acordo. E essa ausência acabou enfraquecendo muito (o acordo de) Kyoto.
E, depois de certo número de anos, buscou-se uma solução, que foi um novo acordo sobre a convenção do clima - o Acordo de Paris. O fato de os Estados Unidos saírem é naturalmente um baque considerável.
O que a presidência da COP fará para contornar essa situação?
Os Estados Unidos não são apenas o governo americano. São as universidades, os Estados, as empresas, toda a parte de pesquisa americana.
Há várias maneiras de trazer certas dimensões do Estados Unidos para negociação, mesmo que o governo federal não queira participar. Por exemplo, o (empresário e ex-prefeito de Nova York) Michael Bloomberg se comprometeu a pagar para a convenção do clima (órgão da ONU) o que seria devido pelos Estados Unidos neste ano.
Já estamos sentindo que há uma reação muito determinada de certos setores dos Estados Unidos.
Mas o Brasil pode fazer interlocução com Estados para convidar para a COP? Como será isso na prática?
A COP não é apenas a negociação entre países. Nenhum outro ator americano pode participar das negociações, mas além da dimensão de negociação, uma COP tem, por exemplo, a agenda de ação, criada justamente para trazer outros atores para as discussões.
A grande diferença, naturalmente, é o que é decidido pelos países por consenso. É, de certa forma, uma legislação internacional. O que é acordado são compromissos, mas não compromissos com dimensão legal.
Com a ausência dos EUA, quem ocupa o papel de liderança entre os países desenvolvidos?
Normalmente, um dos maiores atores nessas negociações é a União Europeia. E como você tem visto esses últimos dias, a (presidente da Comissão Europeia) Ursula Von der Leyen foi cobrada em Davos de que a legislação europeia estava dura demais, que diante das dificuldades com a saída dos Estados Unidos, seria importante isso ser revisto.
A União Europeia está sendo questionada dentro da própria União Europeia. E vários países da União Europeia são menos entusiastas do que outros sobre as agendas ambiental e do clima. Não está fácil a situação da União Europeia para tentar ter liderança maior este ano.
Portanto, há espaço para que outras grandes economias possam ter papel mais determinante nesse período todo que antecede a COP, com vistas a resultados na COP. É óbvio que os grandes países em desenvolvimento são atores sempre importantes, mas talvez possam adquirir nova dimensão.
Quais seriam esses países?
Entre os países em desenvolvimento com economias maiores há um grupo muito influente, que é o Basic, composto por Brasil, África do Sul, Índia e China. O Basic sempre é um ator importante, mas que poderá ter seu papel ainda aumentado.
As pequenas ilhas em desenvolvimento também têm influência, porque são as primeiras vítimas, sofrem até a possibilidade de desaparecer. Há outros atores importantes entre os países em desenvolvimento, que todos vão procurar ocupar o espaço que visivelmente deve ser deixado pela ausência americana e pelas dificuldades da União Europeia.
A China é um país relevante, mas resiste ainda em adotar medidas pró-clima. Sendo um parceiro da China e negociando em bloco com ela, o que o Brasil fará para que esse país tome medidas mais contundentes de combate às mudanças climáticas?
A China é um dos atores mais importantes de mudança do clima, porque faz muito mais do que que declara. A China está antecipando vários dos seus objetivos climáticos em vários anos, ou seja, avançando mais rápido do que a gente imagina.
A gente sabe o quanto o mundo está reagindo à eficiência da China, por exemplo, na produção de carros elétricos, de painéis solares e outros equipamentos que, graças à escala e tecnologia da China, conseguiram se desenvolver de maneira muito impressionante.
Como a China tem relação especial com o Brasil, vamos trabalhar os objetivos da COP-30 com esse país. Também vamos trabalhar esses objetivos brasileiros com a Índia, com a Indonésia, com vários outros grandes países em desenvolvimento e, naturalmente, com a África do Sul, que está presidindo o G-20 (maiores economias) logo após o Brasil.
O Brasil tinha receio de que o tema do financiamento não fosse totalmente resolvido no Azerbaijão e sobrecarregasse a COP-30. Isso de fato aconteceu. O que a presidência pretende fazer para tocar esse tema e a revisão do Acordo de Paris ao mesmo tempo sem que um esvazie o outro?
Muitos viram no resultado de Baku (no Azerbaijão) algo de frustrante. Ao mesmo tempo houve consenso de que o valor necessário deveria ser US$1.3 trilhão até 2035, mas só se mencionou US$ 300 bilhões.
Diante dessa dificuldade de conseguir um número mais condizente com a urgência climática, há um mandato para o Brasil e o Azerbaijão conseguirem desenvolver um mapa do caminho para se chegar mais rápido, e mais eficientemente, a esse US$ 1.3 trilhão. Essa é uma das missões do Brasil nessa preparação da COP-30.
Como a presidência da COP vai dar conta de resolver todas essas questões?
Será um equilíbrio delicado, por isso já estamos trabalhando de forma intensa, inclusive com outros ministérios, para levar ao presidente Lula os caminhos que podemos tomar para que a COP-30 seja reconhecida como algo que teve influência verdadeira.
Vocês já têm uma definição de quais seriam os resultados buscados?
Estamos montando uma estratégia que será apresentada a ele (presidente). Não há a menor dúvida que o mundo espera que o Brasil, país que tem a maior floresta do mundo, venha com ideias inovadoras sobre florestas, como o TFFF (sigla em inglês para o Fundo Florestas Tropicais para Sempre, mecanismo proposto pelo Brasil em 2023 para pagar países florestais pela preservação do bioma), entre outras coisas.
A questão da justiça climática, por exemplo, é tema importantíssimo para o presidente, porque a mudança do clima pode fazer com que haja retrocesso em avanços sociais recentes.
Há um pleito de países desenvolvidos para aumentar o número de doadores climáticos, incluindo países em desenvolvimento. Qual a posição do Brasil?
É claramente contrária, como a de todos os países em desenvolvimento. Porque sabemos que os países em desenvolvimento contribuem de diversas formas com relação ao financiamento do combate à mudança climática.
Os recursos que o Brasil usa para combater a mudança do clima no Brasil são de longe, sobretudo, os recursos brasileiros. A mesma coisa na China, a mesma na Índia.
Tem de haver compreensão de tudo que Brasil, China, Indonésia e Índia gastam. Estamos investindo no combate à mudança do clima recebendo pouquíssimos recursos internacionais. Os recursos internacionais, como são muito inferiores ao que deveria ser, estão sendo dirigidos, sobretudo, para países mais vulneráveis.
É literalmente absurdo considerar que os países ricos não têm contribuído da maneira como se comprometeram a financiar o combate à mudança do clima dos países em desenvolvimento. O que os países desenvolvidos querem é diminuir a sua conta.
Se tivessem cumprido com o que tinham se comprometido e estivessem dizendo: “Vamos aumentar outras fontes de recursos”, mas não é. Infelizmente, a sensação que tivemos em Baku é de que os países desenvolvidos querem que os países em desenvolvimento substituam as doações deles.
Isso vale mesmo para grandes economias como a China?
Todos temos contribuído de maneira diversa, primeiro com os nossos próprios orçamentos. A redução, por exemplo, do custo de uma placa solar graças à China, é um elemento de cooperação internacional extraordinário. Ficou mais barato para a África adotar energia solar graças à China
A contribuição do Brasil desenvolvendo biocombustíveis é uma solução que pode ser adotada por outros países em desenvolvimento. É uma enorme contribuição do Brasil para a cooperação internacional no combate à mudança do clima. Há vários exemplos que geralmente não são registrados e tem tido impacto grande.
Na COP dos Emirados Árabes, pela primeira vez houve menção à transição rumo ao fim do uso de combustíveis fósseis. Embora o Brasil tenha acompanhado o consenso sobre isso, Lula já deu declarações a favor de explorar petróleo na Margem Equatorial. Não é uma contradição?
Todos os países enfrentam alguma forma de contradição no combate à mudança do clima. Porque cada país deve encontrar o seu próprio caminho para adaptar a sua economia às necessidades da mudança do clima.
Há casos interessantes, como países desenvolvidos que decidem não usar mais energia nuclear, que vão aumentar significativamente o uso de energia nuclear. Países que podem ter mais (energia) eólica, mais (energia) solar.
A Arábia Saudita caminha para ter 50% da sua eletricidade renovável nos próximos cinco anos. É extraordinário e, de certa forma, surpreendente. E a Arábia Saudita está fazendo um plano de reflorestamento em certas regiões do país onde isso é possível, que também tem dimensões surpreendentes.
Temos de entender que cada país tem de desenvolver as suas soluções de acordo com suas prioridades de desenvolvimento. Naturalmente os países em desenvolvimento têm preocupação grande em melhorar o bem-estar de suas populações, porque ainda têm muitas populações com dificuldade econômica.
Até nos países mais ricos, você vê o quanto combate à mudança do clima provoca reações políticas significativas. Não preciso comentar o mais óbvio, que é o caso dos Estados Unidos, mas também lembrar quantos países europeus estão com governos fragilizados pelo inesperado aumento do custo de energia.
Temos de encontrar no Brasil nossa fórmula para combater a mudança do clima com vistas aos compromissos que o país assumiu com os demais por consenso.
A COP será sediada no Pará, que enfrenta questões ambientais, inclusive em um período do ano onde há seca forte. Em novembro do ano passado, o Pará acumulava cerca de 42% dos focos de incêndio do País. Por que não temos conseguido conter as queimadas? Como fará para que isso não atrapalhe a credibilidade do Brasil?
Nenhum país está indiferente à possibilidade de ter incêndios com consequências extremamente negativas. A maioria dos países entende que com o tamanho do Brasil — e se você pensa que o bioma Amazônia sozinho, dentro do Brasil, é maior do que a Índia — é difícil ter equipamento e estrutura para um combate mais efetivo. Mas os resultados têm sido positivos e apontam para uma capacidade cada vez maior de combate a esses incêndios.
Mas, por outro lado, o mundo assistiu perplexo aos incêndios de Los Angeles. Como é que é possível no país mais rico do mundo, com ruas, estradas, aviões, perto do oceano, com equipamentos extraordinários e com previsão, que isso pôde acontecer?
Recebi comentários de vários países desenvolvidos dizendo: ‘Agora a gente se dá conta o quanto deve ser difícil lidar com o território do tamanho da Amazônia ou do Pantanal, sendo um país em desenvolvimento e que consiga lidar com incêndios que se agravam por causa da mudança do clima.’
Essa é uma das dimensões que a gente não pode esquecer. Lembrar que grande parte desses incêndios na Amazônia e no Pantanal já são resultado da mudança do clima provocada pelos demais países, que mudaram o regime de chuva.
A floresta está mais seca do que anteriormente. Esses incêndios se alastram mais rápido e de forma mais significativa. Sou naturalmente otimista, mas não há a menor dúvida de que estamos todos, países desenvolvidos e em desenvolvimento, aprendendo muito sobre a dificuldade crescente de enfrentar a mudança do clima.
A NDC brasileira (meta para redução de emissões definida via Acordo de Paris) foi considerada insuficiente por especialistas. Isso não desmobiliza outros países ?
Na realidade, nossa NDC foi, de modo geral, bem recebida, porque incorporou o que é importante para as NDCs apresentadas agora: ser compatível com evitar que se chegue a 1,5ºC (acima dos níveis pré-industriais).
O que o senhor pretende trazer como marca para sua presidência da COP-30?
Não tenho isso definido, mas acredito que o Brasil, que teve influência positiva nas negociações das últimas COPs, tem a capacidade de procurar objetivos para Belém que sejam ao mesmo tempo realistas e efetivos.
O Brasil é um dos poucos países em desenvolvimento que tem, além de economia importante, cientistas de altíssima qualidade, sociedade civil super ativa, liberdade de imprensa, uma democracia em que você vê esse tema ser debatido de maneira aberta.
Somos, de certa forma, uma versão menor do mundo. Temos, infelizmente, os desafios da pobreza, mas também certos desafios da riqueza, uma vez que temos setores da população que têm nível de vida muito elevado. O Brasil é um um país que entende muito bem os outros e acho que isso vai ajudar.
Espero, como presidente da COP, poder contribuir com base no que a gente vai desenvolver com o resto do governo e, naturalmente, com as orientações do presidente da República. Temos a capacidade de fazer algo que tenha impacto sobre os mais diversos setores da economia, na qualidade de vida das pessoas, mas naturalmente temos consciência que é um desafio gigantesco.