SÃO PAULO - Uma conversa que envolve um diretor de uma ONG é considerada pela polícia como principal elemento que liga ambientalistas e brigadistas a incêndios registrados em Alter do Chão, no Pará. Nesta terça-feira, 26, uma operação resultou na prisão de quatro pessoas consideradas suspeitas e em buscas na sede de organizações que atuam na região. Nenhum elemento ligado a perícia, testemunhas ou imagens conclusivas é apresentado no documento que embasa o pedido deferido pela Justiça, ao qual o Estado teve acesso. As prisões foram mantidas em audiência de custódia nesta nesta quarta-feira.
Para os investigadores da Delegacia de Conflitos Agrários do Baixo e Médio Amazonas, da Polícia Civil, a conversa entre Gustavo de Almeida Fernandes, diretor de logística da ONG Projeto de Saúde e Alegria, e uma pessoa identificada apenas como Cecília tem relevante destaque no inquérito. Na conversa, ele diz que “está por trás de tudo”, identificando-se na sequência como membro da brigada de Alter, acrescentando que está “recebendo apoio de todo mundo”.
Ouça o áudio em que diretor fala que está 'por trás de tudo'
Na sequência da conversa, ele ressalta que a situação “tá triste, né”. “Foi triste, a galera está num momento pós traumático, mas tudo bem”. À interlocutora, Fernandes adverte que haverá bastante fogo quando ela chegar. “Se preparem. Nas rotas, nas rotas inclusive”. Um pouco depois acrescenta: “O horizonte vai estar todo embaçado”.
Para a polícia, o aúdio representou uma guinada nas investigações. No pedido de prisão, os delegados responsáveis escrevem que as interceptações telefônicas realizadas “indicavam apenas que o grupo de brigadistas estava se aproveitando da repercussão internacional tomada pelo incêndio ocorrido na APA Alter do Chão, buscava beneficiar financeiramente a ONG Instituto Aquífero Alter do Chão”. A queimada no local aconteceu entre 14 e 16 de setembro e ganhou repercussão internacional em meio à crise que o País enfrentava com alta de registros em diferentes pontos do território.
A conversa, para os investigadores, deixa perceptível a referência a “queimadas orquestradas”, “uma vez que não é possível prever, mesmo nessa época do ano, data e local onde ocorrerão os incêndios”.
No pedido enviado à Justiça, sem acrescentar elementos objetivos que sustentem a tese, a polícia diz ser “cógnito”, sabido, que é comum brigadas de incêndio, “sobretudo as não oficiais, atearem fogo em pequenas áreas para depois debelarem as chamas e, dessa forma, divulgarem suas ações com a finalidade de obter patrocínio”.
Os investigadores reforçam que essa é a linha de investigação, “havendo indícios sobejos de que os membros da brigada de Alter do Chão tenham lançado mão deste artíficio, pois todos os presentes durante a ação de combate ao fogo (...) notaram que tanto o incêndio como a atuação da brigada era tratada como um verdadeiro ‘reality show’”.
Em um momento do inquérito, os policiais chegam a citar dois brigadistas que teriam sido citados em depoimentos como envolvidos no incêndio em Alter do Chão. Eles teriam agido, segundo rumores, visando a registrar a ação da brigada para então captarem recursos. Contudo, os dois brigadistas não voltam a ser citados no relatório feito pelos policiais e, apesar de terem sido interceptados, não são alvos de pedidos de prisão e de busca e apreensão.
Ao responder aos pedidos feitos pela polícia, o juiz Alexandre Rizzi diz que conversas deixaram “transparecer estranha previsibilidade de queimadas por parte dos líderes da brigada de incêndio de Alter do Chão”. “Aquilo que inicialmente parecia uma autopromoção da ONG sobre as queimadas, voltou-se para um raciocínio de que o incêndio foi dolosamente provocado para satisfazer interesses particulares”, escreveu na decisão que decretou a prisão dos suspeitos.
Outras duas declarações são o que embasam a polícia e o juiz no entendimento de que os funcionários de ONGs agiram de forma dolosa para iniciar um incêndio. Em uma delas, João Victor Pereira Romano, diretor do Instituto Aquífero Alter do Chão, diz a Gustavo Fernandes que uma doação deveria ser feita a brigada, “pois foi pela promoção do nosso incêndio lá”. Em outro momento, Romano conversa com um fotógrafo não identificado que se apresenta na ligação como o fotógrafo que “mais queima e apaga fogo do Amazonas”.
Para o juiz do caso, as conversas interceptadas “denotam que novos incêndios estavam previstos com alto grau de certeza, o que foge inclusive de quaisquer dados estatísticos”.
Ouça o áudio em que João e Gustavo falam sobre a "promoção do nosso incêndio"
Ouça o áudio em que o fotógrafo diz que queima e apaga fogo do Amazonas
Área foi alvo de grilagem e condenado está foragido
A investigação da polícia descreve a área da APA, que foi incendiada entre 14 e 16 de setembro deste ano, como uma região afetada recorrentemente pelas queimadas. Os agentes destacaram no início da investigação que a área já foi alvo de grilagem e loteamento, o que resultou em sua total devastação.
Um homem, indicou o relatório da polícia, foi condenado no ano passado há seis anos de prisão pela devastação, mas está foragido. A eventual ligação das queimadas com a ação desse homem que já devastou a área em anos anteriores não aparece em nenhum outro momento da investigação e parece não ter sido abordada pela polícia.
Em nota divulgada na noite desta quarta-feira, 27, o Ministério Público Federal (MPF) em Santarém informou ter enviado ofício à Polícia Civil do Pará requisitando acesso integral ao inquérito que acusa brigadistas por incêndios florestais em área de proteção ambiental em Alter do Chão.
"Desde setembro, já estava em andamento na Polícia Federal um inquérito com o mesmo tema. Na investigação federal, nenhum elemento apontava para a participação de brigadistas ou organizações da sociedade civil. Ao contrário, a linha das investigações federais, que vem sendo seguida desde 2015, aponta para o assédio de grileiros, ocupação desordenada e para a especulação imobiliária como causas da degradação ambiental em Alter. "
O inquérito da Polícia Civil informa que a recorrência de queimadas é relativamente comum na região, “geralmente com início em pequenos focos de incêndio que encontram condições especialmente favoráveis às chamas, combinadas com as condições meteorológicas dessa época do ano”. Os agentes ressaltaram que, para uma ocorrência dessas proporções, é necessário alguém para iniciar o fogo. A busca, então, se concentrou no que foi chamado de “agente causador”.
No fim de agosto, integrantes do Projeto Saúde e Alegria participaram de um curso de formação de brigadistas para atuação em Alter do Chão. Moradores da vila, segundo a polícia, supostamente relataram que a incidência de pequenos focos tornaram-se frequentes, sempre prontamente debelados pelos brigadistas, “que alardeavam em redes sociais suas ações”. Essas testemunhas não foram nomeadas no relatório.
A polícia classifica como curioso o fato de uma campanha ter sido iniciada nas redes sociais na primeira noite após o início das queimadas no local. A campanha buscava angariar fundos para ajudar na compra de equipamentos a serem utilizados pelos brigadistas. A atuação de 22 voluntários na área necessitava de maquinário específico, como motosserras, sopradores, rádios comunicadores, GPS e equipamento de proteção individual.
A campanha apontava para uma conta cujo beneficiário é o Instituto Aquífero Alter do Chão e administrada por João Victor Pereira Romano e Marcelo Aron Cwerner, dois dos quatro que foram presos nesta terça. Essas são as suspeitas que a polícia usa para pedir a quebra de sigilo telefônico das pessoas apontadas como suspeitas.
'Delegado tem de enumerar motivos e necessidades para a prisão', diz desembargadora
A desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), explica que, para o juiz decretar a prisão preventiva, é preciso ter prova da materialidade do crime e indícios de autoria. "Via de regra, a prisão é decretada para garantir a ordem pública e do processo, porque os suspeitos podem fugir, ameaçar testemunhas ou destruir documento", diz.
Para isso, no entanto, a autoridade policial precisa apresentar à Justiça quais são os indícios que fundamentam o pedido. "O delegado, quando representa contra alguém, tem de enumerar os motivos e as necessidades para aquela prisão, que é excepcional. A regra é a liberdade."
Segundo Ivana, o fato de o juiz pertencer a uma vara especializada, como é o caso de Alter do Chão, reduz riscos de erros. "É um juiz especializado, que já estava investigando há dois meses e provavelmente monitorando os suspeitos", afirma. "Ele está familiarizado com as particularidades do local e conhece os tipos de crime praticados."
Para a advogada constitucionalista Vera Chemim, o conteúdo da interceptação telefônica, divulgado pela polícia do Pará, seria suficiente para fundamentar a prisão. "A partir do momento que há, realmente, indícios que levem à autoria do crime, eu posso pedir para decretar a preventiva", diz. "Não precisam ser muitos indícios, mas eles precisam ser representativos."
"A prisão preventiva é necessária para que a polícia possa realizar sua investigação de forma mais tranquila, mais serena, sabendo que aqueles elementos que foram presos não estão livres para, de repente, tentar obstruir a investigação", afirma a advogada. "Não é uma punição: a punição ele só vai ter depois, se for condenado. É, como a gente chama, uma medida acautelatória, ou seja, de cautela."
Ainda de acordo com a avaliação da especialista, o fato de os suspeitos estarem sendo investigados por dois crimes pode ter pesado para a decisão. "É claro que provocar incêndio em floresta, hoje, é um crime ambiental significativo, mas o fator determinante foi a associação criminosa. Somado, isso justifica a prisão", diz.
Falando em tese, por não ter acesso ao inquérito, o advogado criminalista Everton Moreira Seguro, do escritório Peixoto & Cury Advogados, afirma que o termo "garantia da ordem pública", por ser amplo, acaba servindo para justificar prisões desnecessárias. "É um coringa que existe na lei e as autoridades usam como praxe", diz.
"Via de regra, todos têm de responder em liberdade e, em último caso, a prisão ser decretada.", afirma Seguro. "Quando não há prova suficiente, lá na frente chegam os recursos e a Justiça acaba soltando o acusado. Ele responde em liberdade e é até absolvido", diz. "Esse tipo de prisão, muitas vezes, é uma forma de pressionar o acusado, por exemplo, a fazer delação premiada. É o que a gente chama de 'conseguir a prova a grito'."
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