Os vestígios de seres humanos na região da Lagoa das Velhas, no sertão da Bahia, existem há mais de dois mil anos, mas só em 2010 o produtor rural Edgard Navarro viu aquelas pinturas rupestres nos paredões. “Fiquei encantado com a beleza e ao mesmo tempo triste com a depredação”, recorda. Ao lado das marcas pré-históricas, havia até pichações.
Há dois anos, o sítio histórico em Morro do Chapéu integra uma iniciativa criada pelo Ministério Público (MP) baiano que incentiva produtores rurais e proprietários a transformarem parte das suas terras em reservas particulares de proteção ambiental (RPPN). É o Projeto Biomas da Bahia, lançado em 2022.
A ação, desenvolvida em parceria com os institutos Água Boa, Ynamata e Fundação José Silveira, quer envolver donos de terras na conservação da biodiversidade e aprimorar o acompanhamento dos biomas, a partir, por exemplo, de câmeras de monitoramento.
A riqueza estadual, e a necessidade de mantê-la viva, justifica o projeto. A Bahia é o único Estado brasileiro que tem cinco biomas - Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Costeiro e Marinho - e já tem 55 RPPNs em 16 cidades. Somadas, elas resultam em 45 mil hectares protegidos.
O produtor e biólogo Edgard Navarro é proprietário de três delas - são 619 hectares de áreas protegidas. Em 2010, quando conheceu a Lagoa das Velhas, ele sentiu a necessidade de proteger o território. Só não sabia por onde começar.
Durante conversa com o arqueólogo Carlos Etchevarneque, ele pensou na criação de uma RPPN. Embora a propriedade na Lagoa pertencesse à família Navarro desde 1951, só em 1996 Edgard passou a frequentá-la com mais frequência.
“Meu avô amava a natureza. E eu também sou biólogo. A conversa com Carlos foi o trampolim para a realização do sonho. Mas ainda faltava um apoio, até surgir o projeto”, lembra.
Primeiro, foram reconhecidas as áreas onde se concentram as pinturas rupestres. Em seguida, surgiu a possibilidade de proteger um terceiro trecho, onde há árvores de 25 metros de altura e seis nascentes.
É nesses pontos, e no Parque Estadual do Morro do Chapéu, que a equipe do professor Gustavo Schacht, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), executa o projeto Bichos do Morro desde 2022.
Quatro câmeras disponibilizadas pelo MP foram espalhadas em árvores para catalogar e acompanhar espécies de animais silvestres existentes. Um dos primeiros bichos flagrados nas imagens foi o gato do mato pequeno, o menor dos gatos malhados da América do Sul, ameaçado de extinção.
“A diversidade geral de espécies é maior que aquela encontrada nos outros locais já estudados em Morro do Chapéu. Foram registradas 16 espécies da fauna silvestre da Caatinga, a exemplo do Tamanduá mirim e do Furão”, afirma Schacht, doutor em Geografia Física pela Universidade de São Paulo (USP).
Produtores são incentivados a criar RPPNs
- Diferentemente de outras modalidades de áreas protegidas, a RPPN só surge se há disposição do dono da propriedade. Para incentivá-los, então, o projeto Biomas da Bahia banca os custos da criação desse tipo de unidade. Eles incluem despesas com georreferenciamento, por exemplo. O custo, em média, é de R$ 10 mil.
O financiamento vem de um fundo gerenciado pela Fundação José Silveira, nutrido pelos valores de multas ambientais aplicadas na Bahia.
“Antes era um contrassenso, porque a pessoa que quer transformar parte da sua propriedade em área protegida deveria ser recebida com tapete vermelho”, acredita Pablo Almeida, promotor do MP e coordenador do projeto.
Antes de dar o aval que transforma uma área em RPPN, MP e parceiros analisam os documentos do território e catalogam as riquezas naturais. Só então há o lançamento da propriedade no Cadastro Ambiental Rural e um pedido administrativo é protocolado na Secretaria do Meio Ambiente (Sema), que dá o parecer favorável ou não.
Hoje, o Biomas da Bahia reúne dois perfis de produtores. O primeiro deles são pessoas que realizaram derrubada ilegal de mata. “Muitas vezes, os promotores sugeriam, como compensação, que aquela área virasse RPPN”. Para surpresa de Almeida, “esses são 1%”.
- Os outros 99% são produtores que voluntariamente querem transformar propriedades em reservas de proteção. Eles têm motivos para isso, que não se resumem à compreensão da importância de preservação. Transformada em RPPN, uma área se torna mais atrativa para o turismo ambiental e atrai pesquisadores e atividades educativas. A derrubada de mata se torna proibida.
Os proprietários, que não transferem a posse das terras, ainda têm benefícios como a isenção do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR).
“O principal aspecto é o reforço e o acréscimo de áreas protegidas. Que isso não depende exclusivamente do poder público. A gente brinca que é como se fosse um selo - o Estado veio e disse que minha área é importante para o meio ambiente”, conclui o coordenador do Biomas da Bahia.
A busca por novas parcerias
O biólogo Paulo Machado sempre ouviu do pai, o conservacionista Angelo Machado, que a maneira mais eficiente de incentivar uma pessoa a proteger a natureza é dar um banho de cachoeira nela. A metáfora cabe bem para os planos que ele tem para uma propriedade em Canudos, no Norte da Bahia: levar pessoas a tomarem um banho, só que de Caatinga.
“A pessoa tem que imergir, conhecer, é o conhecimento que gera a conservação. Nossa meta é transformar pelo menos 90% dessas áreas em RPPN”, diz Machado, que preside a Fundação Biodiversitas, voltada para a conservação da natureza brasileira a partir de atividades técnico-científicas, ações educacionais e turismo ambiental desde 1989.
Desde setembro do ano passado, ele e a equipe da fundação integram o projeto Biomas da Bahia. Hoje, há 29 processos de criação de RPPN em andamento. Além delas, 21 estão em montagem - duas delas na região de Canudos, na área da Biodiversitas.
Por lá, estão aves que só existem na Bahia, como a arara-azul-de-lear e o entufado baiano, ameaçados de extinção. “É uma região árida e remota, ainda estamos buscamos o apoio do projeto para conseguir a obtenção do registro. Nosso objetivo é tornar aquelas áreas autossustentáveis pelo turismo sustentável”, afirma Machado.
Para conseguir atender às demandas em crescimento, o principal desafio do projeto é garantir novas fontes de recursos. A meta, para 2024, é de mais 16 mil hectares de reservas particulares protegidas na Bahia.
“O projeto utiliza valores de termos de ajustamento de conduta. Ou seja, os valores pagos por degradadores ambientais são revestidos para apoiar a preservação da vegetação nativa. Não existe um orçamento com fonte definida”, afirma Yuri Lopes de Mello, coordenador do Centro de Apoio às Promotorias de Meio Ambiente e Urbanismo (Cema) e idealizador do Biomas da Bahia.
O projeto surgiu depois de experiências dele no Núcleo de Defesa da Mata Atlântica. Quando assumiu o Cema, em 2020, Yuri percebeu que poderia expandir as ações empreendidas pelo núcleo nesse bioma.
A criação de uma RPPN por si só, no entanto, não garante proteção. Às dificuldades de conseguir novos parceiros, Jorge Velloso, presidente do Instituto Água Boa, acrescenta a presença de invasores e caçadores como ameaça a essas reservas.
“Na visão equivocada do órgão, o resultado de conservação promovido pelas RPPNs é do proprietário, quando na verdade, ela significa um benefício para toda a sociedade e para as futuras gerações. temos demandas específicas que nos falta apoio, principalmente por questões relacionadas a caça ilegal em RPPNs”, critica.
Procurados, o Instituto Do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, responsável por ações de fiscalização ambiental, e a Sema não responderam às solicitações da reportagem.
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