Incêndios florestais têm se tornado mais intensos e atingido mais áreas no Brasil e em outras partes do mundo. Estados Unidos, Canadá e Chile bateram recordes em suas temporadas de fogo em anos recentes.
Por aqui, o Pantanal e a Amazônia tiveram o 1º semestre com mais fogo em décadas. Neste mês, o interior de São Paulo sofreu com focos de incêndio que colocaram 48 cidades em alerta máximo de perigo. Duas pessoas morreram tentando combater as chamas em uma usina em Urupês (SP).
O fogo interditou rodovias, restringiu atividades de aeroportos, causou a suspensão de eventos e prejuízos contabilizados em R$ 350 milhões para o agronegócio. Seis suspeitos foram presos e não há mais registro de focos ativos de incêndios nesta terça-feira, 27.
Além de fiscalizar e punir responsáveis pelos crimes ambientais, especialistas ouvidos pelo Estadão defendem a importância da prevenção. A sanção da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, no último dia 31, é vista como boa saída para melhorar a prevenção.
A política regula o uso do fogo no meio rural, definindo diretrizes para queimadas controladas (para fins agropecuários) e prescritas (para fins de conservação), mediante autorização prévia dos órgãos competentes, entre outras medidas de prevenção.
Ela também prevê instâncias intergovernamentais para a resposta aos incêndios e um cadastro nacional de brigadas florestais. Também define que brigadas voluntárias e particulares tenham cadastro junto ao Corpo de Bombeiros de cada Estado.
Segundo a professora de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) Isabel Schmidt, o Brasil é um dos últimos países com ambientes que queimam naturalmente, como o Cerrado, a instituir uma política de manejo do fogo. Experiências estrangeiras de prevenção e combate podem ajudar o Brasil a se preparar melhor para queimadas, que devem ficar mais frequentes com a crise climática.
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Mas, destaca a coordenadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio (UFRJ), Renata Libonati, “toda gestão de fogo deve ser adaptada às condições climáticas, ao tipo de vegetação, à dinâmica do solo de cada local e às condições socioeconômicas”.
Mais integração
Para Osvaldo Barassi Gajardo, especialista de conservação e coordenador do núcleo de respostas emergenciais do WWF-Brasil, os incêndios em São Paulo nos últimos dias têm semelhanças com os que atingiram a região de Valparaíso, no Chile, no início de 2024. Assim como muitas áreas que queimaram no interior paulista eram de plantações de cana, no país andino foram plantações de pínus e eucalipto.
Gajardo é chileno e trabalhou no serviço florestal do país durante vários anos. No Brasil está há quase 14, dez deles no WWF, onde atua principalmente capacitando brigadistas voluntários, muitos deles em territórios indígenas.
Para ele, dois pontos da prevenção e combate a incêndios que tem funcionado em seu país natal e poderiam ser aprimorados aqui são a manutenção de brigadas permanentes e a integração entre os atores envolvidos nas duas etapas.
Na Corporação Nacional Florestal do Chile, órgão responsável pela gestão dos parques nacionais e pelo controle dos incêndios florestais, há um efetivo mínimo de brigadistas contratados permanentemente, que é ampliado por contratações temporárias nas épocas mais críticas. Eles realizam ações de prevenção e planejamento de manejo do fogo durante todo o ano.
No Brasil, as brigadas federais são contratadas temporariamente para atuar na temporada de fogo, e as funções do órgão florestal do Chile estão distribuídas entre o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o PrevFogo, Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais do Ibama. Esses dois órgãos federais atuam muitas vezes em colaboração, como nas queimas prescritas realizadas em unidades de conservação.
Segundo Gajardo, porém, ainda falta no Brasil maior integração entre as organizações que atuam no controle dos incêndios floresta.
No Chile, afirma haver maior articulação entre brigadistas do serviço florestal e outras instituições, como o Corpo de Bombeiros. Isso também ocorre, segundo ele, nos Estados Unidos e no Canadá, onde além das brigadas estatais há empresas privadas que prestam serviço ao governo.
“Eles têm uma forma de organização para que diferentes tipos de brigadas atuem juntas no combate a um incêndio”, diz. “Dá para ver que existe um sistema de comando bem organizado entre eles. Experiências positivas em alguns países são, em grande parte, resultado dessa integração”.
Mais prevenção, fiscalização e investimento
O clima mediterrâneo na região da Califórnia (EUA) e em países da Europa que também sofrem com os incêndios florestais, como Portugal e Grécia, é outro diferencial em relação ao caso brasileiro. Ele é caracterizado por inverno úmido e verão seco, que agrava as condições de propagação do fogo.
Especialmente no caso americano, especialistas destacam haver muito mais estrutura e recursos disponíveis para lidar com o fogo. O governo federal brasileiro até dispõe de aparatos de combate, como helicópteros para apoiar ações de queima prescrita, mas em pouca quantidade.
Após os piores incêndios de sua história, a Califórnia aprovou pacotes climáticos em 2021 e 2022 que destinaram um total de US$ 2,7 bilhões (cerca de R$ 14,9 bilhões) ao longo de quatro anos para promover a resiliência de áreas florestais contra incêndios, incluindo desbaste, queimadas controladas, e reflorestamento.
O estado possui ainda um grande aparato de combate ao fogo com aeronaves e helicópteros que são usados inclusive para o transporte dos “smokejumpers”, bombeiros florestais treinados que são inseridos no local onde há focos de incêndio por meio de paraquedas.
Mas, toda essa estrutura pode não ser suficiente se as condições climáticas forem desfavoráveis, com seca extrema e vento ajudando na propagação do fogo, e material combustível disponível.
Isabel Schmidt, da UnB, afirma que a queima preventiva desse material é essencial mesmo para quem tem melhores condições de combate.
“Se o manejo da paisagem não tiver sido feito antes, em condições climáticas extremas, que estão ficando cada vez mais comuns, não há muito o que fazer para lutar contra o incêndio rapidamente, nem com recurso e tecnologia”, diz.
No Brasil, esse manejo por meio de queimas prescritas vêm sendo feito na última década em unidades de conservação federais e terras indígenas, principalmente do Cerrado. Na maioria delas, os incêndios diminuíram nos últimos anos por conta dessas ações. Esse manejo ainda é aplicado de forma muito restrita fora das áreas protegidas.
Muitos países, incluindo Estados Unidos e Canadá, utilizam institucionalmente o fogo como ferramenta de manejo há décadas. “A gente até já se inspirou (nos outros países). Precisa é ter dinheiro e estrutura para implementar em áreas maiores”, afirma Isabel.
Outra estratégia empregada nesses países para coibir o mau uso do fogo são punições severas – “ter legislação ambiental que realmente seja cumprida e que pese no bolso”, como define a professora da UnB, por exemplo com a possibilidade de perder bens e acesso a crédito.
Para isso, é necessário aumentar a capacidade de fiscalização ambiental por meio de mais investimentos.
Não apenas países ricos têm dado conta de realizar esse tipo de prevenção. A África do Sul aplica o manejo integrado do fogo há quase um século, e transformou-o em um mecanismo de geração de emprego e renda para a população vulnerável.
Inicialmente financiado pelo departamento de meio ambiente do governo sul-africano, o programa Working on Fire atua há 20 anos recrutando e treinando jovens de todo o país, com foco em comunidades marginalizadas e pessoas com deficiência, para prevenir e combater incêndios. Eles também podem se capacitar para outras habilidades, como primeiros socorros, carpintaria, culinária, comunicação, saúde e segurança.
O Working on Fire afirma empregar mais de cinco mil brigadistas em 200 bases na África do Sul.
Escapar da ‘armadilha do combate’
Em Portugal, os incêndios florestais que provocaram mais de 100 mortes em 2017 foram um ponto de virada para implementar formas de prevenção mais efetivas.
Segundo a especialista UFRJ, Renata Libonati, a primeira mudança foi a criação da Agência de Gestão Integrada do Fogo (Agif), com o objetivo de articular todos os entes relacionados à prevenção e combate a incêndios.
As ações da agência foram de campanhas de conscientização direcionadas a diferentes públicos que tinham relação com a ignição (o início) dos incêndios, até o aumento da fiscalização e a maior cooperação com universidades e institutos de pesquisa nas ações
A agência tem obtido resultados positivos: segundo o relatório referente a 2023 divulgado pela Agif, o número de incêndios foi reduzido a mais da metade no ano passado em relação ao anterior, a área queimada foi um terço da média da última década e não houve mortes. Por fim, foi evitada a emissão de 2,5 milhões de toneladas de CO2 para a atmosfera.
Para Renanata, o ponto principal dessa “virada de chave” foi “o entendimento de que o combate de um incêndio é considerado uma falha nesse processo todo, porque eles não conseguiram fazer a prevenção necessária para evitar que ele ocorresse. O combate acontece quando todo o resto falhou”, define.
Com esse entendimento, explica, a agência portuguesa conseguiu romper com algo que é conhecido entre os especialistas em incêndios florestais como “firefighting trap” ou armadilha do combate.
Trata-se de um ciclo vicioso em que só o combate ao fogo sem nenhum tipo de prevenção para manejar a paisagem ou diminuir a ignição leva a novos incêndios que precisam ser novamente combatidos.
No entanto, a pesquisadora afirma que é preciso ter cautela ao trazer ações que deram certo em Portugal, “um país menor do que o Estado do Rio de Janeiro”, para o contexto brasileiro. Ela ressalta a complexidade do contexto nacional “não só em termos de tamanho, mas de tipos de vegetação e sua relação com o fogo, de uso de terra e socioeconômicos”.
Para que os resultados de uma mudança de paradigma como a de Portugal sejam vistos em larga escala aqui, segundo ela, as ações de prevenção precisam ser consistentemente colocadas em prática nos próximos anos.
Procurado para detalhar o trabalho e a distribuição das equipes de brigadistas, o Ministério do Meio Ambiente não se manifestou. Ao Estadão na segunda-feira, o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, disse que há 3 mil brigadistas em atuação em todo território nacional, considerando os efetivos do Ibama e do ICMBio, órgão federal responsável pelas unidades de conservação.
Já a Defesa Civil de São Paulo disse que o gabinete de crise criado no Estado contou com cerca de 15 mil agentes envolvidos nas ações de combate aos incêndios. Isso inclui agentes de Defesa Civil, Militares do Corpo de Bombeiros, Brigadistas da Fundação Florestal, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, do Departamento de Estradas e Rodagens e da União da Indústria de Cana-de-Açúcar.
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