Quem são os guardiões anônimos que ajudam a preservar o mangue do Rio de Janeiro

‘É muito lixo que a gente retira todas as semanas’, diz um dos moradores; projeto da prefeitura paga bolsa mensal a cerca de 30 integrantes do mutirão

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Foto do author Marcio Dolzan

Toda semana, Antônio Carlos e um pequeno grupo de moradores recolhem uma grande quantidade de lixo de um manguezal na Ilha do Governador, zona norte do Rio de Janeiro. Eles também fazem a capina do entorno, monitoram a situação do local e reportam à prefeitura eventuais irregularidades. O trabalho não para nunca, e atividades semelhantes acontecem em outras quatro áreas de manguezais da capital fluminense.

Além de Antônio Carlos - ou Tonico - cerca de 30 pessoas integram o programa Guardiões do Mangue, projeto da prefeitura do Rio que visa a preservar os mais de quatro mil hectares de manguezais espalhados pela cidade. São seis frentes de trabalho, todas formadas por moradores de comunidades do entorno.

Projeto Guardiões do Mangue, da Prefeitura do Rio, coloca moradores de comunidades do entorno para cuidar de manguezais da cidade  Foto: FOTO: PEDRO KIRILOS / ESTADÃO

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O programa foi implementado no 2º semestre de 2023 e irá durar ao menos cinco anos. A prefeitura paga uma bolsa mensal de R$ 1 mil para cada um dos mutirantes, enquanto o encarregado pelo grupo recebe R$ 1,2 mil.

“Os manguezais precisam ser preservados das ameaças, representadas pela perda e fragmentação da cobertura vegetal e deterioração da qualidade dos habitats aquáticos”, diz a gestora do programa, Aline Sodré, da Secretaria Municipal de Ambiente e Clima.

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“Isso acontece sobretudo devido à ocupação, à poluição e às mudanças na hidrodinâmica, e tem como consequência a diminuição na oferta de recursos dos quais muitas comunidades tradicionais e setores dependem diretamente para sobreviver”, afirma.

O recolhimento de resíduos sólidos toma a maior parte do tempo dos guardiões. “É muito lixo que a gente tira todas as semanas. Todo dia a maré entra e traz, a gente consegue amenizar o problema uns 80%”, estima Tonico.

Tonico (ao fundo, segurando uma sacola recolhida do manguezal) é um dos que atuam no programa. Foto: FOTO: PEDRO KIRILOS / ESTADÃO

O guardião do mangue da Ilha do Governador já encontrou de tudo por lá, mas é o lixo descartado de forma incorreta que provoca os maiores acúmulos. “A última vez tirei um (par de) óculos bonzão aí, nem arranhado estava, eu até estou usando. Mas o que mais vem é saco plástico, copo descartável, canudo, aqueles papéis de maço de cigarro. A gente cata tudo.”

Além da Ilha do Governador, o programa está sendo executado em Manguinhos, Sepetiba, Complexo da Maré (duas frentes) e na região do Anil/Jacarepaguá. Quando foi lançado, o programa mapeou oito áreas da capital, mas algumas estão momentaneamente fora do projeto por restrições orçamentárias.

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Integração de moradores é essencial, dizem especialistas

A preservação dos manguezais é vista como fundamental por estudiosos devido à importância para o meio onde ele está localizado. “Eles servem como área de refúgio, alimentação e reprodução para muitas espécies animais. Produzem bens e serviços para sociedade, representando a principal fonte de renda e subsistência para inúmeras comunidades pesqueiras tradicionais”, diz a pesquisadora Rafaela Camargo Maia, do Laboratório de Ecologia de Manguezais, vinculado ao Instituto Federal do Ceará.

“O manguezal ainda é responsável pela proteção da zona costeira, evitando o assoreamento dos rios, por exemplo, e pela retenção de contaminantes, uma vez que atua como filtro biológico”, acrescenta.

Pesquisador na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Fernando De Grande ressalta ainda outra contribuição dos mangues. “Pesquisas têm demonstrado que a retenção de detritos nos manguezais é aliado crucial na luta contra as mudanças climáticas”, diz.

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“Muitos dos detritos orgânicos retidos nos manguezais são permanentemente soterrados pela lama. Esses detritos, compostos principalmente por carbono, provenientes dos restos de plantas e animais, ao serem soterrados nos manguezais, não se decompõem. Portanto, não liberam gases de efeito estufa na atmosfera”, destaca ele, que hoje o impacto da crise climática nos manguezais, na Universidade Napier de Edimburgo (Escócia)

Ele lamenta o fato de os mangues terem sido menosprezados por muito tempo. “Havia uma percepção de que esse ambiente lamacento era ‘sujo’, infestado de mosquitos e de difícil acesso. No entanto, à medida que a pesquisa avançou, especialmente nas ultimas três décadas, ficou evidente que os manguezais são fundamentais para os ecossistemas marinhos e a proteção das regiões costeiras”, diz.

Mutirantes dizem que quantidade de lixo retirado dos mangues da cidade todas as semanas é "incalculável" Foto: PEDRO KIRILOS

Para De Grande, o projeto tem um potencial promissor”. “As comunidades locais têm conexão direta com esse ecossistema. Diariamente, observam variações das marés, as espécies que habitam os manguezais, o florescimento de plantas, a presença de diferentes tipos de peixes e até mesmo o período de reprodução dos caranguejos (fenômeno conhecido como ‘andada’)”, afirma.

Elas têm amplo conhecimento sobre o funcionamento desse ecossistema e podem contribuir significativamente para a produção de dados, que por sua vez se convertem em conhecimento científico. Isso é fundamental para compreender e preservar ainda mais os manguezais e suas espécies”, conclui o especialista.

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