Enquanto a poluição na Baía de Guanabara praticamente dizimou a população de botos na região, que diminuiu 90% desde a década de 1980, não muito longe dali, um trabalho coordenado de educação ambiental, pesquisa e capacitação da comunidade tem sido uma luz no fim do túnel para esses animais encantadores.
Na Baía de Sepetiba, litoral do Rio de Janeiro, o biólogo Leonardo Flach tem esperança de que, assim como Projeto Tamar ajudou a resgatar a população de tartarugas marinhas em oito Estados brasileiros, os botos possam ter de volta as condições ideais para se reproduzirem no Estado. Flach é coordenador científico do Instituto Boto Cinza, que ajudou a fundar, há 25 anos.
Uma das principais frentes de ação do instituto é incentivar o turismo de base comunitária para observação dos botos-cinza, uma espécie de golfinho, o que já vem acontecendo. Dessa forma, Flach explica, nos locais frequentados pelos botos essa atividade pode ser uma alternativa à pesca, a fim de diminuir o alto índice de mortalidade deles em redes de emalhe.
Como os golfinhos têm hábitos estritamente costeiros, podem ser vistos se deslocando, perseguindo peixes, surfando as marolas produzidas pelos barcos e dando saltos. Um belo cenário para turistas, especialmente crianças.
“A natureza nos dá certos presentes. Um dia eu estava levando um grupo para um passeio, tinha bastante golfinho, já tinha sido legal, mas, quando estávamos voltando, três golfinhos muito espertos deram saltos bem grandes do nosso lado. Foi bem emocionante”, contou Caio Ambrosio Oliveira, 23 anos, ao Estadão.
Filho de pescador, ele se tornou um dos guardiões do mar na região de Mangaratiba, após fazer os cursos promovidos pelo Instituto Boto Cinza, inclusive de turismo de observação, e hoje é taxi boat na ilha de Jaguanum, onde mora. As embarcações licenciadas para a atividade estão identificadas com o selo “Condutor Amigo do Boto-cinza”, e os condutores, com carteira semelhante.
Neste projeto, mais de 80 pescadores e seus filhos e filhas, moradores das ilhas de Jaguanum e da Marambaia, já foram capacitados para atuar no turismo de base comunitária como fonte alternativa de geração de renda, educação ambiental e conservação das espécies marinhas da região, principalmente o boto-cinza.
Parte deles obteve a habilitação de MAC (Marinheiro Auxiliar de Convés), fornecido pela Capitania dos Portos. O MAC permitirá que os pescadores exerçam a profissão de aquaviário, que tem uma demanda crescente na região, devido a mudanças das atividades econômicas nos últimos dez anos.
“Essa nova profissão permitirá que continuem vivendo da atividade no mar e perto das comunidades de origem. Outra oportunidade é o turismo. Os participantes recebem o certificado de boas práticas da APA Marinha Boto-Cinza para operação do turismo de observação de golfinhos de pescadores com MAC”, explica o coordenador do Instituto.
Segundo Flach, o desenvolvimento dessa atividade tem sido possível graças a uma das principais conquistas da ONG, que foi a criação, em 2015, da Área de Proteção Ambiental (APA) Marinha na Baía de Sepetiba, localizada no município de Mangaratiba. “Assim conseguimos fazer o zoneamento da área onde a pesca é permitida, preservando o habitat para os botos, e capacitamos os filhos de pescadores para que possam ter uma alternativa melhor de renda com o turismo de observação”, explica Leonardo Flach.
Botos-cinza, assim como outras espécies de golfinhos, possuem marcas em suas nadadeiras dorsais, resultado de suas interações com o meio e com outros da espécie. A última estimativa divulgada, feita pelo instituto em 2015, indicava a presença de 850 botos na Bacia de Sepetiba.
“Essa população diminuiu pelo menos 25% com um vírus que atingiu a região entre 2018 e 2019. Se não fosse o trabalho da ONG, aqui seria uma nova Baía de Guanabara, que tinha 400 botos-cinza na década de 1980 e hoje tem apenas 25″, diz Flach.
Monitoramento por satélite
Paralelamente ao trabalho de capacitação da comunidade local e de mobilização das autoridades para que fiscalizem e criem as medidas regulatórias necessárias à preservação desse ecossistema, o biólogo explica que outra frente importantíssima de atuação é a pesquisa científica. Um dos principais projetos executados pelo instituto foi a pesquisa do monitoramento via satélite dos golfinhos e baleias, que contou com apoio financeiro da Ternium. Esse projeto teve uma primeira etapa concluída e está em processo de renovação para seguir em frente.
“Fizemos o estudo de telemetria satelital de golfinhos e baleias do complexo Sepetiba-Ilha Grande. Até o momento, já foram rastreados oito golfinhos de duas espécies diferentes (golfinho-de-dentes-rugosos e golfinho-pintado-do-Atlântico) e uma espécie de baleia (Baleia de Bryde)”, relata Leonardo Flach.
Os golfinhos-de-dentes-rugosos foram rastreados em dois momentos diferentes. No primeiro momento, dois animais foram marcados simultaneamente e permaneceram juntos enquanto os transmissores funcionaram. Esses dois golfinhos se deslocaram entre o norte do Rio de Janeiro e norte de São Paulo, percorrendo uma distância de mais de 140 km/dia e utilizaram áreas das UCs Marinhas dos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Após retornarem do norte de São Paulo, entraram na Baía de Ilha Grande e permaneceram por vários dias.
Segundo o biólogo, outros dois golfinhos foram marcados na Baía de Sepetiba ficando mais de uma semana se deslocando ao longo de toda sua extensão. Em seguida, foram para a Baía de Ilha Grande e ficaram mais quatro dias se deslocando, até que no 13.º dia desceram para o litoral norte de São Paulo.
”Também foi uma conquista o fato de que, pela primeira vez, golfinhos-pintado-do-Atlântico foram marcados, e estamos descobrindo padrões de uso do habitat e movimento na costa Sudeste do Brasil. Este estudo permite saber que área os golfinhos preferem usar durante o período diurno e noturno. Notamos uma preferência de uso de área dentro da Baía de Ilha Grande, durante o dia, e área de fora da Ilha Grande durante a noite”, disse.
Também de forma inédita, eles conseguiram rastrear uma Baleia de Bryde acompanhada de seu juvenil dentro de uma área estuarina. “Identificamos áreas de uso no complexo Sepetiba-Ilha Grande, gerando importante informação para auxiliar as autoridades portuárias sobre possíveis áreas de colisão, entre embarcações e baleias, que utilizam essas áreas.”
Além de utilizar áreas costeiras para alimentação, as baleias fizeram um deslocamento de mais de 1.000 km ao longo da costa Sudeste e Sul do Brasil, com deslocamento diário de aproximadamente 63 km.
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