Raio x e exame às 2 da manhã: como funciona o ‘check-up’ das florestas inundáveis na Amazônia

Cientistas brasileiros escanearam parcelas e coletaram amostras de vegetação para entender como mudança climática afeta ecossistemas que passam parte do ano debaixo d’água

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Foto do author Juliana Domingos de Lima
Por Juliana Domingos de Lima

Os biólogos Julia Tavares e Thiago Sanna trabalham juntos há mais de dois anos para mostrar que a Floresta Amazônica não é uma mancha verde no mapa. “Não existe essa uniformidade. Há vários tipos florestais dentro da Amazônia”, diz ela.

O foco de estudo dos pesquisadores são as florestas alagáveis, áreas da Amazônia que passam dias e até meses inundadas pelas cheias dos rios e que obrigaram plantas, animais, pessoas e muitos outros seres a se adaptarem a esse modo de vida anfíbio.

Vista de planície alagável no rio Japurá, na Amazônia. Modelos climáticos globais tendem a não mostrar áreas inundáveis na Amazônia Foto: Pablo Albarenga/National Geographic

Mais do que tornar conhecida a diversidade da maior floresta tropical do mundo, porém, o objetivo da dupla é descobrir qual o nível de vulnerabilidade desses ecossistemas às mudanças climáticas.

Essa missão uniu os dois pesquisadores durante a expedição Perpetual Planet à Amazônia, realizada pela National Geographic Society com o apoio da Rolex.

Thiago Silva e a equipe se encaminham para realizar o mapeamento por Lidar, sensor que permite criar reprodução digital da floresta Foto: Pablo Albarenga/National Geographic

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No caso das florestas alagáveis, é a primeira vez que cientistas realizam avaliação em larga escala das características fisiológicas de espécies vegetais para determinar o quanto as árvores são capazes de resistir a períodos maiores de seca e inundação.

Eles também estão construindo modelos digitais 3D das 21 florestas estudadas para compreender melhor a fisiologia das árvores dessas áreas, catalogá-las e acompanhá-las ao longo do tempo.

A floresta amazônica vive pelo segundo ano consecutivo em 2024 uma seca histórica que tem levado rios como Solimões e Negro a atingirem baixas históricas e isolado comunidades que dependem da água para se locomover.

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Nas regiões da floresta sujeitas ao pulso de inundação, pesquisadores já percebem alterações causadas pelas mudanças climáticas. Os ciclos de seca e cheia, que costumavam ser regulares na Amazônia, estão se tornando menos previsíveis, mais extremos e duradouros.

Segundo Sanna, a seca foi um obstáculo para o próprio trabalho de pesquisa. “Quando fomos a campo em 2022, tivemos dificuldade de chegar em alguns pontos das parcelas (de floresta estudadas) porque não tinha água”, disse.

No caso das inundações, Jochen Shöngart, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), declarou em julho durante a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência que nove eventos de cheias severas foram registrados nas duas primeiras décadas do século 21, mesmo número contabilizado em todo o século passado.

Inventário florestal 3D

Uma das etapas da pesquisa da dupla consistiu em escanear a floresta pelo ar e pelo chão com uma tecnologia chamada Lidar (Light Detection and Ranging), tanto durante a seca quanto durante a cheia.

Thiago e equipe utilizam drone e scanner para criar modelo 3D da floresta Foto: Pablo Albarenga/National Geographic

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O sensor envia raios laser que “batem” em galhos, troncos de árvores, raízes e no solo, captando a posição desses corpos e gerando milhões, até bilhões de pontos que vão formar uma imagem digital da floresta.

A ideia é capturar as áreas de estudo condensando informações relevantes para a pesquisa, além de criar um registro detalhado que possa ser revisitado. O número e posição desses pontos revela informações como a densidade da vegetação e a altura das árvores, preditores importantes da quantidade de carbono que armazenam.

“Essa reprodução digital de altíssimo detalhe de como a floresta estava no momento em que a gente foi a campo é um registro histórico desses ambientes que não era possível antes do Lidar”, diz Sanna.

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Tablet opera que o scanner do Lidar, mostrando detalhes das florestas mapeadas em 3D Foto: Pablo Albarenga/National Geographic

O Lidar já é usado há algumas décadas para detectar a estrutura de florestas, mas seu uso só se tornou mais acessível nos últimos anos, com os avanços na tecnologia em função do uso do sensor pelos carros autônomos, que fez com que ele ficasse menor, mais leve e barato.

Antes, o Lidar precisava ser carregado por um avião e agora é acoplado a um drone, capaz de gerar uma imagem muito mais detalhada do local, em que é possível ver cada árvore individualmente. De acordo com o pesquisador, um voo de 25 minutos consegue cobrir até 1 km² de área.

O modelo permite compreender a “arquitetura hidráulica” das árvores - suas ramificações, o diâmetro dos galhos - o que, segundo Sanna, influencia na resistência à seca.

“No fim das contas, a árvore é um encanamento que está puxando água do solo e soltando na atmosfera. Se você muda o design desse encanamento, muda a maneira de transportar a água”, explica.

Thiago Sanna analisa dados do Lidar em seu computador. Varreduras com o laser permitem obter um modelo preciso da floresta Foto: Pablo Albarenga/National Geographic

A partir dele, também se pode estimar quanto tempo cada árvore fica inundada durante o ano e ao longo da vida.

“Será que tem espécies que estão consistentemente nos pontos mais altos ou mais baixos do terreno porque toleram mais ou menos inundação? Ou será que a gente tem a mesma espécie sendo inundada por tempos e em lugares diferentes com uma resposta fisiológica diferente, se adaptando ao ambiente que ela está?”, questiona o pesquisador.

As respostas a essas perguntas vão ajudar a determinar o comportamento dessas florestas diante da mudança climática.

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Segundo o biólogo, as árvores de florestas inundáveis desenvolveram uma série de adaptações para sobreviver ao estresse do período de cheia. Algumas perdem parte das folhas para reduzir o gasto de energia, “desligam” as raízes para ficar debaixo d’água, têm lenticelas (poros no tronco) e raízes aéreas para conseguir respirar.

Ainda assim, períodos de seca e cheia mais intensos e prolongados significam uma “ameaça em dobro” para essas árvores e estreitam seu espaço de sobrevivência.

“Quando a gente fala que está estudando mudança climática, as pessoas sempre pensam que é para o futuro. Mas não é uma predição, a gente está observando acontecer. Vai continuar acontecendo, mas não há dúvidas de que já está em curso”, diz Sanna.

Antes do primeiro raio de sol

Para Julia Tavares, bióloga baseada atualmente na Universidade de Uppsala, na Suécia, entender a sensibilidade das florestas inundáveis à mudança climática é como montar um quebra-cabeça.

A ecologista Julia Tavares coleta amostras antes que a luz do sol atinja as folhas. À noite, as árvores e a atmosfera estão em equilíbrio Foto: Pablo Albarenga/National Geographic

Em sua parte da pesquisa, as peças são folhas e galhos coletados na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, a cerca de 600 km a oeste de Manaus, no médio Solimões, que abriga o Instituto Mamirauá. Tavares é pesquisadora associada da entidade.

A coleta do material botânico e a medição da pressão de água das árvores foram realizadas no início da madrugada, quando o sistema formado pela árvore, o solo e a atmosfera está em equilíbrio. A equipe trabalha com agilidade, armazenando as folhas em sacos à prova de luz e caixas refrigeradas.

As folhas coletadas por escaladores em árvores de até 50 metros foram armazenadas em sacos, vedados antes de o sol nascer. Aos primeiros raios de luz, os estômatos se abrem e começa a fotossíntese, com a planta absorvendo carbono e liberando água, o que altera as condições de equilíbrio.

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O alpinista de expedição Adriano Lima seleciona amostras de folhas no topo de uma árvore, antes que sejam atingidas pelo sol e comecem a perder água Foto: Pablo Albarenga/National Geographic

Além dos escaladores, há mais pessoas trabalhando ao mesmo tempo, cerca de dez no total, que realizam medições de vários tipos, por exemplo do tamanho e formato das folhas e da dureza da madeira do tronco.

Essas características físicas influenciam a habilidade das florestas para lidar com as mudanças no pulso de inundação e na temperatura. Julia compara o trabalho a um “check-up” médico.


Está tudo escuro, são duas horas da manhã. A floresta é muito viva sempre, os sons. De repente você vê umas luzes começando a acender, é a gente se preparando para ir para o campo. São três barcos, a gente pega a voadeira e vai andando pelo rio até chegar onde precisa. Nosso trabalho é 100% dependente das pessoas da comunidade, o conhecimento que elas têm é inacreditável. Eu nem enxergo nada e eles sabem aonde que a gente tem que ir, aonde vira, aonde entra no rio. A gente começa a entrar na floresta e parece um portal, é lindo. A gente com a luzinha dentro do barco, já sabe quais são as árvores porque já deixa elas preparadas, e aí os escaladores começam a subir. Eles vão sair de dentro do barco para escalar essas árvores de 40 metros e jogam o material, que tem que cair dentro do barco. São dois barcos escaladores e o outro é o que eu fico fazendo as medições. A floresta alagada é fantástica. Quando a gente pega o barco e olha o céu, ele está muito estrelado. As pessoas perguntam, ‘Mas você não sente medo da floresta de madrugada?’ Eu não sinto nenhum medo, absolutamente nenhum. Eu olho aquele céu no meio da Amazônia, o vento do barco batendo, os barulhos da floresta, e eu penso que é um privilégio muito grande, me sinto a pessoa mais sortuda do mundo por isso ser o meu trabalho. Nossa senhora, que sorte!

Uma vez coletados, material e dados são levados para um laboratório flutuante no meio do Solimões. Ali começam testes para avaliar aspectos como a vulnerabilidade à seca e a vulnerabilidade térmica das espécies.

Isso é feito induzindo uma seca em um galho de árvore para estabelecer quando atinge a chamada “falha hidráulica”, ponto em que não suporta mais a falta de água. Os pesquisadores querem entender se esse ponto varia de acordo com o tempo de inundação, o que permitiria extrapolar a descoberta para outras partes da Amazônia.

Equipe de pesquisa escaneia e mede individualmente as folhas para mensurar a capacidade de absorção de água Foto: Pablo Albarenga/National Geographic

O equivalente é feito para testar a tolerância ao calor, “cozinhando” as folhas em diferentes temperaturas para determinar o limite no qual a planta perde a capacidade de fazer fotossíntese, processo em que retira o carbono da atmosfera para se nutrir.

“É como se ela não pudesse comer mais. É ruim para a planta, porque ela não consegue manter o seu metabolismo e é ruim para a gente, porque gera um feedback positivo para o aquecimento global”, explica a pesquisadora.

Antes de se juntar a Thiago Sanna, Julia já havia realizado, com o apoio de uma equipe de pesquisadores, uma avaliação da vulnerabilidade à seca de diferentes florestas de terra firme na Amazônia do Brasil, Peru e Bolívia em sua pesquisa de doutorado pela Universidade de Leeds, na Inglaterra. O resultado foi publicado em um artigo da revista Nature em 2023.

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Os pesquisadores ainda estão processando os dados coletados, mas já conseguem afirmar que as florestas têm diferentes habilidades de lidar com a mudança climática. E que cada árvore perdida, seja pelo desmatamento ou pelo agravamento da crise climática, diminui a capacidade de bombeamento de água da floresta para a atmosfera.

“Se a gente tira uma árvore, está reduzindo a precipitação. Quanto mais a gente interrompe esse ciclo, pior a gente fica para a gente, pra todo mundo, no Sudeste também. A hora de agir é agora”, diz Tavares.

*A repórter viajou a convite da Rolex, pela Iniciativa Perpetual Planet

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