Por que o Rio Grande do Sul é um prenúncio da crise climática no Brasil?

Estado vive mais um período de chuva extrema depois de anos de seca, indicando mudança no sistema hidrológico que deve afetar todo o País

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Por Juliana Domingos de Lima
Atualização:

Nos 23 anos de experiência da meteorologista e sócia diretora da empresa MetSul, Estael Sias, a enchente histórica de 1941 sempre foi a referência de pior cenário para o Rio Grande do Sul.

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O Estado enfrenta em maio o 4º episódio de fortes chuvas e inundações em menos de um ano e o marco de oito décadas atrás, que ela não contava ver ultrapassado, foi desbancado por 2024, Na noite de sexta-feira, 3, a cheia do Guaíba, em Porto Alegre, superou a marca, alagou o centro histórico e fez autoridades pedirem a evacuação de vários bairros.

“Com a velocidade de repetição dos fenômenos extremos, não duvido que aconteça de novo em menos tempo”, afirma Estael ao Estadão. O Rio Grande Sul tem 75 mortes confirmadas, além de 103 desaparecidos, desde o início da semana.

Uma parte dos temporais de maio é atribuída a características da própria região, situada no encontro entre sistemas polares e os tropicais. Com latitudes médias, que tornam o Sul um “ringue” entre o ar quente e o ar frio, a área é o nascedouro de fenômenos climáticos que depois modificam as condições meteorológicas do resto do País.

Assim, as chuvas intensas ao longo do ano fazem parte do calendário do Estado, mas se tornaram mais frequentes e intensas sobretudo na última década, afirma a meteorologista.

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Carros foram atingidos por enchente na cidade de Encantado, no Rio Grande do Sul Foto: Diego Vara/Reuters - 3/5/2024

As particularidades da região são potencializadas por outros fatores, como o fenômeno El Niño, vigente desde meados de 2023 e que deve acabar nas próximas semanas, e as mudanças climáticas. Estudos feitos pelo MetSul confirmam a ligação de alguns dos eventos extremos recentes com o aquecimento do planeta.

E esses episódios extremos não se resumirão ao Sul do País. Lá, as tragédias recentes - em setembro do ano passado, 54 pessoas morreram após a passagem de um ciclone extratropical - funcionam como prévia do que está por vir. As tragédias de São Sebastião (SP), no ano passado, e em Petrópolis (RJ), em 2022, são outros alertas da recorrência de desastres por inundações e deslizamentos.

Em outras regiões, como Norte e Centro-Oeste, a expectativa é de clima mais seco. Pelo Brasil, o aquecimento global deve ainda alterar o regime de chuvas, com impactos econômicos, como nas safras do agronegócio e na geração de energia, além da deterioração da Floresta Amazônica, o que afeta o clima de todo o planeta.

Coordenador geral de Operação e Modelagem do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), Marcelo Seluchi explica ao Estadão que as tempestades atuais se formaram em função da onda de calor que afeta a porção central do País, incluindo São Paulo, e de frentes frias sucessivas vindas da Argentina e Uruguai, que não conseguem avançar para além do Paraná devido à alta pressão.

Com isso, as massas de ar frio ficam retidas no Rio Grande do Sul, encontram canais de vento, ou “rios voadores”, que estão trazendo umidade da Amazônia, e formam a precipitação dos últimos dias.

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Solo mais raso, cheias maiores e mudança do clima

A suscetibilidade do Rio Grande do Sul a eventos climáticos extremos tem ainda relação com um solo mais raso, que “guarda” pouca água, e vazões de cheia (medida do fluxo dos rios em períodos de cheia) maiores em comparação ao restante do País, segundo o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rodrigo Paiva.

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Esses dados naturais contribuem para as cheias extremas e também para a estiagem prolongada que tem afetado duramente a população (de quase 10,9 milhões), as cidades e a produção agrícola do Estado (maior produtor brasileiro de arroz e o segundo maior de soja) nos últimos anos. Além de prejudicar o tamanho e a qualidade das safras, o bloqueio de estradas afeta a distribuição dos itens, o que pode levar a desperdício.

Novamente, a natureza é só uma parte da história. Paiva aponta que análises de séries históricas das últimas décadas têm indicado mudanças no sistema hidrológico, com perspectiva de aumento das cheias dos rios gaúchos. “Essa tendência seria ainda mais forte se incluir os eventos recentes”, afirma.

Além da variabilidade natural das cheias, o professor chama atenção para o consenso da comunidade científica internacional, representada pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas, sobre como o aquecimento do planeta deve acelerar o ciclo hidrológico, causando chuvas mais intensas em alguns lugares e secas maiores em outros.

Em estudo ainda em andamento encomendado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento ao Instituto de Pesquisas Hidráulicas, que busca projetar o impacto da crise climática sobre os extremos hidrológicos em todo o Brasil, o pesquisador tem percebido as diferenças em cada região do País, com o Centro e o Norte mais secos e o Sul mais úmido quando se observa as precipitações médias.

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Já em relação às mudanças no padrão de precipitações extremas como as que vêm afetando o Rio Grande do Sul, Paiva alerta que devem aumentar em quase todo o País.

“Todo o Brasil vai ter algum problema relacionado à mudança do clima. A gente deve se preparar. Vão ser muitos desafios para a segurança hídrica e cada região terá sua especificidade. Como o impacto é regional, a adaptação vai ter de levar isso em conta.”

Levantamento do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), por exemplo, mostra que o número de dias de chuva extrema (acima de 50 milímetros) mais que dobrou em Porto Alegre na década 2011-2020 em relação aos padrões observado nos anos 1960 (passou de 29 para 66 no ano).

Outras capitais viram o mesmo problema. Em Belém, esse total saltou de 49 para 143 na mesma comparação. Em São Paulo, subiu de 40 para 70.

Já na região central da América do Sul, conforme o IPCC, as projeções apontam para mais secas em meados do século 21, o que afeta o Nordeste e o Centro-Oeste, que abriga o Cerrado.

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Esse bioma tem visto escalada no desmatamento nos últimos anos e sua produção agrícola é um dos principais motores da economia brasileira, além de ser responsável pelo abastecimento de alimentos em várias partes do mundo.

Cenários com a maior frequência de incêndios e desertificação são também considerados de alta probabilidade pelos cientistas do IPCC. No 1º quadrimestre deste ano, o Brasil teve recorde de queimadas desde o inicio da série histórica das medições federais (1998), com 17 mil focos de fogo, sobretudo na Amazônia.

Além dos graves efeitos para a atmosfera (o desmatamento é a principal fonte de emissões do Brasil), os incêndios têm consequências para a biodiversidade e a saúde humana. Estudos já mostraram que a fumaça das queimadas da Amazônia e do Pantanal afeta diretamente a qualidade do ar até de centros urbanos mais distantes, como São Paulo.

“Há cheias no Rio Grande do Sul, ondas de calor no Sudeste. Tivemos secas e enchentes completamente atípicas na Amazônia. Esses fenômenos estão acontecendo em todos os biomas. O Pantanal queimou durante dois anos seguidos, o que nunca tinha se observado em dez, vinte anos”, alerta Paulo Artaxo, professor de Física da USP e um dos integrantes do IPCC. “Esses eventos mostram de forma clara que estamos mudando drasticamente o clima do nosso planeta.”

Governo prevê radar meteorológico para a Grande Porto Alegre

Em nota, o governo do Rio Grande do Sul afirma dar agora prioridade total ao resgate e atendimento das vítimas das chuvas, atuando em conjunto com as forças nacionais de segurança.

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Diz também ter instituído em novembro de 2023 o gabinete de crise climática, que tem as seguintes medidas em andamento: contratação de serviço de radar meteorológico pela Defesa Civil para Grande Porto Alegre, em fase final de implementação; melhorias na Sala de Situação, que monitora as chuvas e os níveis dos rios e implementar o mapeamento das ações ligadas ao clima na esfera municipal.

Em visita ao Rio Grande do Sul na quinta-feira, 2, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu verbas ao Estado para se recuperar das consequências do desastre e disse que vai lançar um novo braço do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) voltado para obras em encostas.

Segundo o Palácio do Planalto, além de criar a Sala de Situação em Brasília e o escritório de monitoramento em Porto Alegre, o governo reconheceu o estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul, liberou o pagamento de R$ 580 milhões em emendas do Estado, destinou R$ 55 milhões para contenção de encostas, R$ 8,4 milhões para compra de 52 mil cestas básicas e enviou equipes de saúde, militares e agentes da Força Nacional para auxiliar as autoridades locais.

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