Com o aquecimento global, não é só o Rio Grande do Sul que vai ficar exposto a eventos climáticos extremos e desastres. Maior metrópole da América Latina, São Paulo e sua região metropolitana estão entre as áreas “mais críticas do Brasil”, avalia o coordenador-geral de Operação e Modelagem do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), Marcelo Seluchi.
O meteorologista sinaliza a faixa leste, que inclui a região metropolitana e também o litoral, como a mais suscetível no Estado a inundações e deslizamentos de terra — consequências da chuva intensa recorrentes em São Paulo, principalmente pela alta proporção de pessoas morando em áreas de risco. Prefeitura e Estado têm projetos de dois piscinões (leia mais abaixo).
O verão paulistano é tradicionalmente chuvoso, mas um levantamento feito por Seluchi mostra que as precipitações na capital têm ficado cada vez mais concentradas em poucos dias. O estudo usou dados da estação meteorológica Mirante de Santana, na zona norte paulistana.
A conclusão é de que a quantidade de vezes em que choveu mais de 80 milímetros em um único dia – volume considerado limiar para deslizamentos – quadruplicou ao longo dos últimos 60 anos. “Já estamos, infelizmente, verificando os efeitos das mudanças climáticas. O número de desastres nos últimos anos realmente assusta”, diz o pesquisador do Cemaden.
Antes da tragédia gaúcha, que soma 172 mortes, o Estado de São Paulo assistiu a um temporal extremo no litoral norte, em fevereiro do ano passado, com 65 vítimas. Em um só dia, choveram 683 milímetros na região, um recorde nos registros meteorológicos do País.
Embora na capital não haja uma geografia que permita alagamento tão extenso quanto em Porto Alegre ou tenha caído tanta água em tão pouco tempo quanto em São Sebastião, chuvas seguidas de transtorno já fazem parte da realidade. Um temporal recorde – de 114 mm, o maior em 37 anos – fez transbordar os rios Tietê e Pinheiros em fevereiro de 2020, pouco antes da pandemia, interditando as marginais e deixando paulistanos ilhados. É um prenúncio de um problema que pode se agravar.
“Os rios urbanos historicamente foram tratados como canais de drenagem de águas poluídas, tamponados, sem a preservação de vegetação nas margens nem o reconhecimento de sua importância como espaço público e de qualificação ambiental”, diz Luciana Ferrara, especialista em planejamento urbano e ambiental e professora da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Segundo levantamento feito em 2022 pelo Estadão em bases de dados oficiais, a Grande São Paulo tem mais de 132 mil imóveis em áreas de risco alto e muito alto para deslizamentos e enchentes.
Estes dois tipos de risco estão concentrados em áreas distintas. Nas baixadas dos rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí estão os pontos mais propensos a inundações na capital. Antes espaços de cheias naturais dos rios, os fundos de vale foram ocupados e os rios emparedados pelo asfalto das avenidas.
Com as chuvas, esses rios recebem a água que se acumula nas encostas e não consegue ser retida pelos piscinões, o que leva ao transbordamento. “É como o que aconteceu em Porto Alegre: o Guaíba está na parte mais baixa e recebe águas de toda a região”, compara Anderson Kazuo, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador do Observatório das Metrópoles.
Já o risco de deslizamento se concentra nas áreas mais altas das encostas, principalmente nas periferias. Nesses locais, com base nos dados do Censo de 2010, o Cemaden estima que mais de 900 mil pessoas estejam vulneráveis a deslizamentos na região metropolitana. Ainda não há atualização com base no Censo de 2022, mas o mais provável é que esse total tenha crescido. A Justiça deu 30 dias para a Prefeitura finalizar o Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR), com objetivo de mitigar efeitos de desastres climáticos.
A vulnerabilidade desses locais é intensificada pela declividade, o solo instável e a falta de esgotamento sanitário nas casas. “São Paulo e a região metropolitana estão numa região serrana, de morros, e têm a maior população do País em área de risco”, afirma Seluchi.
Isso não impede, porém, que bairros mais ricos da cidade também sejam afetados, a exemplo de Moema, na zona sul, que tem histórico de estragos e até mortes causadas por alagamentos. No Morumbi, outra região de alto padrão da zona sul com inundações frequentes, Prefeitura e Estado têm projetos de dois piscinões.
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Por que São Paulo alaga?
As grandes inundações que costumavam atingir as várzeas dos rios paulistanos no passado, principalmente a Marginal Tietê, foram amenizadas pela construção de piscinões nas últimas décadas. Mas, segundo Kazuo, elas podem ter maior magnitude se os piscinões não forem redimensionados para suportar os novos volumes das chuvas.
“Se não adaptar o sistema de macrodrenagem nas periferias e no centro expandido, inundações podem voltar a ocorrer nessa mesma gravidade”. Segundo o professor da Unifesp, medidas de microdrenagem para ajudar os piscinões a reter água e fazer com que uma parte se infiltre no solo também devem ser adotadas.
Para especialistas, entre os principais fatores que causam inundações e deslizamentos em São Paulo, estão:
- Modelo de ocupação urbana: São Paulo foi construída no vale do Rio Tietê, ocupando áreas de várzea e fundos de vale. Têm centenas de rios e córregos, muitos dos quais foram enterrados pela construção da cidade;
- Impermeabilização do solo: falta de áreas verdes distribuídas pela cidade diminui absorção de água e aumenta escoamento;
- Drenagem obsoleta: sistema de drenagem atual não comporta volume crescente das chuvas;
- Acúmulo de lixo: resíduos entopem os bueiros que já carecem de adaptação.
Segundo o professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP Pedro Côrtes, as redes mais antigas do sistema de drenagem sequer foram projetadas para o clima tropical: são baseadas em modelos americanos e europeus.
“Ou seja, já não eram adequadas para chuvas muito intensas em um contexto de normalidade. Em geral, isso não era um problema tão grave quando as ruas eram de terra ou paralelepípedo, porque a impermeabilização da cidade não era tão grande. Mas isso mudou”, destaca Côrtes.
Segundo dados da Prefeitura, a cidade tem quase metade (48%) de seu território coberto por área verde. Essa vegetação, porém, se concentra em áreas protegidas nos extremos da cidade, enquanto a quantidade de parques e praças nos bairros é insuficiente.
‘Risco de crise hídrica se repetir é muito grande’
As ondas de calor têm ficado mais frequentes – a mais recente, entre abril e maio, foi a quarta do ano e trouxe dias quentes atípicos para um começo do outono. Essa mudança de tempo traz “riscos novos, que não se tinha nessa gravidade” em São Paulo, segundo o professor da Unifesp Anderson Kazuo.
Esses riscos são amplificados pelas ilhas de calor, que surgem em áreas muito verticalizadas e de baixa arborização. Na capital, afetam mais fortemente a periferia e as bordas do centro expandido, segundo Kazuo.
Além das chuvas e do calor, pesquisadores chamam a atenção para outro problema que deve se intensificar com a mudança climática: a seca que deixa os reservatórios em níveis baixos e ameaça a segurança hídrica de uma população superior a vinte milhões na Grande São Paulo. Para Kazuo, “o risco da crise de 2014 se repetir aqui é muito grande”.
Com os efeitos do fenômeno La Niña, que devem começar a ser sentidos na metade de 2024, o prognóstico para a cidade no próximo ano é de redução das chuvas.
Segundo Pedro Côrtes, isso não quer dizer que São Paulo estará livre de temporais nesse período – eles ainda podem afetar sobretudo os pontos crônicos de alagamento e as encostas da capital. Mas destaca que o alerta deve estar aceso também para os efeitos do tempo seco à saúde e ao abastecimento de água.
“As chuvas muito irregulares têm feito com que se alternem períodos em que há uma situação boa e outros em nível muito baixo dos reservatórios”, afirma. O poder público, segundo ele, fez investimentos de ampliação da estrutura de captação de água na última década, mas os desafios devem ganhar nova escala.
A ampliação do reuso da água proveniente do tratamento de esgoto para determinadas atividades é uma das medidas que, na visão de Côrtes, ajudariam a aliviar o estresse ao qual o sistema está submetido. Hoje, elas são usadas obrigatoriamente apenas na lavagem das ruas após feiras públicas e em processos industriais.
Para ele, é preciso superar a resistência da população em relação a essa estratégia. “A gente não consegue negociar com o clima, então temos que buscar adaptação a esse novo contexto”, afirma.
Quais são as soluções?
Além das obras de engenharia, Côrtes levanta possibilidade de adotar o “IPTU verde”, um desconto no Imposto Predial Territorial Urbano para imóveis que adotem soluções ambientais que aumentem a absorção da água e ajudam a aliviar o sistema de drenagem. “Uma casa sozinha não resolve, mas a soma das contribuições individuais pode ser significativa”, sugere.
Um obstáculo à adoção dessas soluções ambientais é a falta de integração entre o plano de drenagem e o plano diretor da cidade, segundo nota estudo de 2023 dos pesquisadores da Universidade Mackenzie Renato Sobral Anelli e Renata Priore Lima.
Para Luciana Ferrara, da UFABC, esses problemas reforçam a necessidade de integrar políticas de saneamento (especialmente a drenagem), habitação e urbanização de favelas, parques e áreas verdes, e repensar as concepções de projeto e de infraestrutura para lidar com a crise climática.
“É preciso entender que, sim, a água ocupa um espaço, que a natureza é importante e precisa ser considerada nos espaços urbanos e rurais. Não dá mais para pensar a organização e o desenvolvimento urbano como sinônimo de construção da cidade no seu sentido físico”, alerta ela.
Segundo os especialistas, as soluções devem passar por:
- Engenharia e Infraestrutura:
- Mais piscinões (reservatórios de retenção de água);
- Redimensionamento dos piscinões para suportar novos volumes de chuvas;
- Melhorar o sistema de drenagem urbana, considerando o clima tropical e as mudanças climáticas.
- Políticas Urbanas e Ambientais:
- Integrar o plano de drenagem com o plano diretor da cidade;
- Projetos urbanísticos com ações combinadas de saneamento, habitação, e recuperação de orlas fluviais;
- “IPTU verde” para incentivar soluções ambientais, como jardins de chuva, em propriedades privadas;
- Planejamento urbano que reconheça a importância da vegetação e espaços naturais,
- Novos espaços verdes;
- Mapeamento de áreas de risco, monitoramento e ações preventivas pela Defesa Civil;
- Remoção de moradores de áreas de risco e aumento da oferta de moradia adequada
- Reuso da água oriunda do tratamento de esgoto para certas atividades, como lavar ruas e processos industriais
Governo destacam piscinões e ampliação de áreas verdes
Ao Estadão, a Prefeitura diz que oito piscinões estão em obras na cidade e outros três em fase de licitação. Afirma também que a Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras aplicou mais de R$1,2 bilhão em obras de drenagem em 2023. Entre 2021 e 2023, informa ter realizado 63 intervenções para reduzir áreas de risco, como contenção de taludes das margens de córregos e encostas, obras de drenagem e jardins de chuva.
Além disso, destacou a ampliação das áreas verdes, com a criação de um parque linear em curso, o Córrego do Bispo, e os planos urbanísticos Arco Tietê e Arco Leste, ainda em desenvolvimento, com a proposta de implementação de “Bulevares Fluviais” junto aos Córregos Lajeado e Limoeiro, com ação combinada de saneamento, provisão habitacional, transporte público e recuperação de orlas fluviais. Citou ainda ações de zeladoria e monitoramento pela Defesa Civil que, entre 2023 e 2024 “contribuíram com a diminuição dos alagamentos em relação aos ciclos passados”.
O Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) do Estado destacou fazer medidas complementares às municipais para reforçar o sistema de drenagem urbana. Informou a retirada de 83 mil caminhões de sedimentos dos rios Tietê e Pinheiros em 2023, e a revitalização das margens em outros 225 rios, minimizando enchentes em 156 cidades paulistas.
Afirma estar implantando cinco piscinões, entre eles o Jaboticabal, desenvolvido com base nos novos padrões de precipitações na região para minimizar enchentes em São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul.
Em relação à resiliência hídrica, afirmou ter investido R$ 976 milhões para implantar as barragens Pedreira e Duas Pontes na região de Campinas e ter perfurado cerca de uma centena de poços profundos no Estado para aumentar a oferta de água em períodos de estiagem.
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