O Brasil está enfrentando a maior seca das últimas sete décadas, segundo dados Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. É a primeira vez que a estiagem afeta de forma intensa uma região tão ampla do País, da Amazônia até o Paraná, potencializando incêndios e levando à baixa recorde dos rios. A situação ainda tende a se agravar até novembro.
A série histórica da seca do Cemaden remonta a 1950. Os números dos últimos 74 anos revelam uma tendência de agravamento dos períodos de estiagem a partir do início dos anos 1990, quando esses eventos passaram a ser muito mais frequentes. De lá para cá, a seca mais grave já registrada havia sido entre 2015 e 2016, mas a deste ano (que ainda não terminou) já é a pior, segundo especialistas.
Há nove anos a estiagem foi intensa, mas concentrada no Norte e no Centro-Oeste, bem diferente de agora, que se estende por todas as regiões. Segundo o Cemaden, a seca atual já afeta um terço do território nacional (mais de três milhões de km²). A estiagem segue os modelos previstos de aquecimento global para o Brasil em um cenário de temperaturas médias globais já 1,5ºC acima da média (esse foi o limite de aquecimento definido no Acordo de Paris).
“Desde o início do monitoramento, nunca tínhamos visto seca tão extensa e intensa quanto essa”, diz a pesquisadora do Cemaden Ana Paula Cunha, responsável pelo monitoramento das estiagens no Brasil. “Víamos regiões isoladas sofrerem com ciclos de seca, mas desta vez é generalizado.”
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Conforme os dados do Cemaden, 3,8 mil cidades do País - de um total de 5.571 - enfrentam um período de seca (que pode ser de fraco a excepcional). Esse número saltou quase 60% entre julho e agosto.
O baixo volume de chuvas fez com que os rios chegassem a níveis tão baixos que o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) já anunciou a ativação das termoelétricas para suprir a demanda.
Na Amazônia, onde boa parte do transporte é hidroviário, várias cidades estão isoladas por conta dos rios que secaram.
O carpinteiro Francisco da Silva, 47, já se prepara para enfrentar problemas de locomoção na próxima semana. Ele mora com a esposa e um filho na comunidade Terra Santa, zona rural de Manacapuru, a 98 quilômetros de Manaus.
“Só temos mais uma semana para chegar na nossa casa pelo rio. A água está secando muito e depois o único caminho vai ser o ramal.” O local onde mora fica à margem do Igarapé Grande, lago banhado pelo Rio Negro, que marcava 19,26 metros nesta terça-feira,3. Segundo a Defesa Civil do Amazonas, o afluente secou cerca de 25 centímetros por dia na última semana.
Segundo o ribeirinho, o principal alimento da família é a pescaria, prejudicada pela falta de água. “Quando fica só um igarapé pequeno (curso estreito de água), não dá peixe. Pra pegar, só indo muito longe”, conta.
Os focos de incêndio por todo o País e a fumaça estão provocando problemas respiratórios na população. No interior de São Paulo, em poucos dias a quantidade de focos de incêndio superou o registrado durante o ano passado inteiro, causando prejuízo que supera R$ 1 bilhão. Nesta semana, as autoridades paulistas dispararam novo alerta sobre risco de queimadas.
A médio prazo, o impacto na agricultura ainda não foi estabelecido, mas deverá acontecer. Estudos têm apontado os efeitos da crise climática em cultivos importantes para o agronegócio do País, como café e cana-de-açúcar.
Quais são as razões da seca?
Cientistas dizem que várias situações contribuíram para o cenário.
- O El Niño do ano passado, por exemplo, contribuiu para a elevação das temperaturas no País e alterou os padrões de chuva.
- A temperatura do Oceano Atlântico continua acima da média, contribuindo para mudanças nos volumes de precipitação.
- Outras razões são uma temporada de chuva com baixa precipitação, o início antecipado da estação seca e o fato de ela estar pior do que a média.
“É multifatorial”, explicou Ana Paula. “Saímos de um (Oceano) Pacífico aquecido (no El Niño) para um Atlântico Norte mais aquecido. Não houve trégua entre os dois eventos e isso fez com que a seca se agravasse gradativamente.”
Para o meteorologista Giovani Dolif, também pesquisador no Cemaden, a perspectiva a médio prazo é ruim. Tudo indica que a estação seca vai durar mais tempo do que a média, dificultando a recuperação.
“O problema não é só a falta de chuva”, lembra Dolif. “Mas também as temperaturas muito altas, que deixam os rios mais secos e o solo também, de maneira geral, porque a água evapora mais rápido. De outubro a novembro já estaremos na primavera e, portanto, com períodos maior de insolação do que no inverno.”
“Teremos um atraso no início da estação chuvosa ou ainda uma estação chuvosa muito irregular. Os reservatórios devem baixar ainda mais, gerando todo tipo de problema”, diz o cientista Marcelo Seluchi, também do Cemaden. “A agricultura certamente vai sofrer, Talvez seja necessário atrasar um pouco o início dos plantios. Por outro lado, os incêndios ainda vão durar algum tempo, destruindo floresta nativa, trazendo problemas para a saúde da população”, acrescenta. /COLABOROU WALDICK JUNIOR
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