O primeiro projeto piloto da semana de quatro dias de trabalho começa em novembro no Brasil. O modelo é fomentado pela 4 Day Week Global, entidade que incentiva os trabalhadores a discutirem o tema com suas empresas (e sem redução de salário). Se tiver essa conversa com seu empregador, além dos benefícios sociais, para a saúde e de produtividade, um bom argumento é o impacto positivo da medida para frear o aquecimento global, como aponta uma série de estudos.
Ainda que os efeitos das mudanças climáticas tendam a ser desiguais e maiores entre os mais pobres, como mostram os relatórios das Nações Unidas, patrões ou empregados não têm como escapar deles.
Em um mundo 1,1º C mais quente em relação aos níveis pré-industriais, um dia a menos de trabalho por semana significa menos deslocamentos, gasto de energia, combustíveis fósseis e potenciais mudanças de hábitos. Isso se traduz em níveis mais baixos de emissões de gases do efeito estufa, principalmente dióxido de carbono (CO2), causadores das mudanças climáticas
Essa é uma das conclusões de uma pesquisa da Universidade de Reading, na Inglaterra. Publicado em novembro de 2021, e realizado com 2 mil funcionários e 500 líderes empresariais, o estudo afirma que, se todas as empresas e organizações do Reino Unido passassem a adotar a semana de quatro dias, os deslocamentos para o trabalho diminuiriam em mais de mais de 1 bilhão de quilômetros por semana.
O estudo também aponta que essas empresas economizaram cerca de 2,2% do faturamento total (R$ 6,4 bilhões) ao reter talentos e aumentar a produtividade. Além disso, mais de dois terços das empresas dizem acreditar que uma semana de quatro dias será importante para o futuro da companhia e 75% dizem que a maior barreira para adotar o modelo é garantir a disponibilidade para seus clientes.
No mesmo ano, em maio, estudo da 4 Day Week Global e da Plataform London, uma ONG focada em justiça ambiental, apontou que a mudança para a jornada de quatro dias, sem perda de salário, tem potencial para diminuir a pegada de carbono do Reino Unido em 127 milhões de toneladas até 2025.
De acordo com o levantamento, isso representa redução de 21,3%, e é mais do que toda a pegada de carbono da Suíça. Também equivalente a retirar 27 milhões de carros das ruas - quase a totalidade da frota de veículos particulares do país.
O que essas pesquisas mostram no Reino Unido, Daniela Aguiar e Hilmar Júnior vivem em São Paulo, desde novembro, quando a empresa em que trabalham, a Vockan Consulting, reduziu a jornada de 15 funcionários da área de Suporte, o que representa 50% da equipe administrativa, para quatro dias por semana.
A companhia foi a primeira do Brasil a se afiliar à 4Day Week Global e passou a fazer parte de uma pesquisa da entidade com empresas de Portugal. Desde o início, ela segue o modelo proposto internacionalmente de escalonar o dia a mais de descanso às sextas-feiras e às segundas-feiras. Assim, o trabalhador tem sempre quatro dias de trabalho e três de folga seguidos sem que a empresa pare suas atividades um dia a mais.
Segundo o CEO, Fabrício Oliveira, o objetivo é estender o modelo a todos os cem empregados de forma escalonada. “Começamos a observar que a satisfação e a produtividade aumentaram, sem custo adicional.”
E o receio dos 75% dos empresários entrevistados pela pesquisa da da Universidade de Reading não se comprovou na experiência brasileira. “O feedback dos clientes também foi positivo”, diz Oliveira.
A cada dia que Daniela deixa de se deslocar de Santo André, onde mora, para a zona sul de São Paulo, na sede da empresa, ela deixa de rodar cerca de 60 quilômetros. Para Hilmar, isso representa 16 quilômetros a menos.
As menores emissões que resultam disso são medidas desde o início deste século. Uma pesquisa da Universidade de Massachusetts (EUA), de 2012, analisou as emissões de mais de duas dúzias de países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) entre 1970 e 2007. A constatação é que, se a jornada fosse reduzida em 10%, isso resultaria em emissões de gás carbônico 4,2% menores. Se a redução fosse de 25%, essa taxa cairia 10,5%.
Outro estudo - do Centro de Pesquisa Econômica e Política, think tank com sede em Washington - comparou as horas de trabalho e uso de energia entre uma série de nações e os Estados Unidos. Se o país igualasse suas jornadas à da União Europeia, assim como o período de férias, seu consumo de energia poderia ser reduzido em até 20%. Por outro lado, se o bloco europeu se adaptasse ao horário de trabalho americano (e desistisse de suas semanas de trabalho mais curtas e férias mais longas), a UE consumiria 25% a mais de energia.
E isso não é conversa de quem quer apenas trabalhar menos. Países como a Holanda, Nova Zelândia, Suécia, Irlanda, Noruega e Emirados Árabes, além do Reino Unido, já adotam jornadas menores ou mediram seus benefícios.
E, em novembro, as empresas daqui terão a oportunidade de testar o modelo em estudo pioneiro no País conduzido pela 4 Day Week Global, em parceria com a brasileira Reconnect Happiness at Work. Os resultados serão analisados pelo Boston College. As inscrições podem ser feitas no www.4dayweekbrazil.com.
“Em junho e julho, faremos sessões de informações para as empresas interessadas”, afirma Renata Rivetti, fundadora e diretora da Reconnect Happiness at Work. “Em setembro, começaremos a preparação das empresas para que comecemos o piloto em novembro, por seis meses.”
Os ganhos para a saúde e o bem-estar dos funcionários já são claros. Segundo pesquisa com os funcionários da Vockan Consulting, que já estão nesse modelo de trabalho, o aumento geral da satisfação – que engloba gestão do tempo, saúde física e mental, realização de tarefas pessoais, entre outras – foi de 54% (antes do projeto) para 70% (depois).
Já a percepção sobre a qualidade de vida passou de 57% a 86%. O índice sobre o nível de felicidade dos funcionários aumentou em 43% e o de produtividade, em 23%.
O que fazer com o tempo livre?
No início, quando o modelo foi implementado na empresa de Hilmar e Daniela, os funcionários passaram a usar a folga extra para atividades que não conseguiam em dias de trabalho. “Aproveitei para marcar todos os médicos, para levar meu filho também. E fazer coisas que precisamos, mas não encontramos tempo na semana”, afirma Hilmar.
Mas será que uma folga a mais não envolverá maiores deslocamentos (em viagens, por exemplo) e outras atividades que geram CO2? A resposta parece estar, primeiro, em um fato concreto: se o salário não diminui nesse modelo, tampouco ele aumenta. Ou seja, você terá de viver e equilibrar seus gastos como o mesmo valor. Isso inclui gastos básicos com alimentação ou viagens de avião.
Mas há exemplos que mostram que as atividades em dias livres tendem a ser “mais limpas” do que nos dias de semana, quando as pessoas estão estressadas e afetadas pela falta de tempo. A rotina de trabalho pode se traduzir em maiores gastos, por exemplo, com alimentação fora de casa ou entregas à domicílio e, claro, mais emissões de CO2.
Até mesmo isso foi medido. Pesquisa feita com dados do governo na França em 2001, pouco tempo após a redução da jornada de trabalho de 39 horas para 35 horas, sem diminuição de salário, mostrou que 52% dos trabalhadores passaram a usar essas horas livres em companhia da família e filhos.
Do total, 35% aproveitaram para apenas descansar; 34% usaram o tempo para esportes; 18% para atividades culturais; 11% para trabalhos voluntários ou em organizações não governamentais. E apenas 3% e 2% para viajar ou consumir mais, respectivamente.
Após a fase inicial, o tempo livre de Hilmar e Daniela foi preenchido em companhia da família, maiores cuidados com a saúde e bem-estar e mais tempo em parques da cidade, diz a funcionária. “Não só isso: você diminui também a poluição emocional.”
Emissões do Brasil aumentaram
Em novembro de 2021, em Glasgow, durante a Cúpula do Clima, a COP-26, o governo federal se comprometeu a cortar 50% das emissões até 2030, mas avançou pouco no cumprimento dessa meta
À época, o Brasil registrou a maior alta nas emissões de gases de efeito estufa em 19 anos, segundo o Observatório do Clima. A elevação, de 12,2%, ocorreu em 2021, em relação ao ano anterior, e tem como principal causa o desmatamento.
Naquele ano, o País despejou na atmosfera 2,42 bilhões de toneladas brutas de CO2 equivalente - uma forma de mensurar todos os gases estufa em uma mesma medida. O último aumento dessa monta havia sido em 2003, quando os dados de desmate bateram o recorde histórico. As emissões de gases estufa subiram 20% em 2021, conforme o observatório, que reúne mais de 50 organizações da sociedade civil.
No ano anterior, mesmo com a pandemia, que desacelerou a economia do País, e na contramão do mundo, o Brasil teve alta de 9,5% nas emissões de gases estufa em relação ao ano anterior. A tendência mundial havia sido de queda de quase 7%. A causa do sinal trocado brasileiro: a alta nos desmatamentos da Amazônia e do Cerrado, enquanto em países desenvolvidos a redução na poluição esteve ligada a menores atividade industrial e demanda de geração de energia.
A fragilização no combate aos crimes ambientais durante a gestão Jair Bolsonaro (PL) fez o Brasil ser alvo de críticas de grupos econômicos, sociais e científicos interna externamente.
Impacto poderia ser maior no Brasil
As principais causas de emissões no País são as mudanças no uso da terra - que inclui o desmate e as queimadas-, seguida da agropecuária e do setor de energia. Este último emitiu 435 milhões de toneladas de CO2 equivalente em 2021, ante 387 milhões em 2020.
É nesse setor que a semana de quatro dias impacta. Ou seja, se o Brasil desmatasse menos, a medida teria peso maior para a redução das emissões. Segundo Luciana Gatti, do Instituto Nacional de Investigação Espacial (Inpe), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, o modelo econômico que coloca o Brasil como maior fornecedor de alimentos do mundo representa um desafio.
Para Nelmara Arbex, líder de consultoria em ESG da KPMG, a semana de quatro dias de trabalho é uma tendência no mundo que chega ao Brasil movida principalmente por questões de saúde mental. Segundo ela, é preciso não confundir o home office com a jornada menor. “É uma tendência principalmente porque vivemos um momento em que a saúde mental está no topo da agenda ESG.”
Quanto à dificuldade inicial das empresas em aderir, ela diz que esse é um processo natural que ocorreu da mesma forma em outros países, como a Holanda. ”É bom para a empresa, para os clientes e para os colaboradores. E no fim, bom para a sociedade, já que temos grandes desafios em saúde mental”, diz.
Ela cita pesquisa da consultoria McKinsey com 15 mil funcionários de 15 países, que mostra que 59% passaram ou estão passando por um desafio de saúde mental. O estudo aponta ainda que funcionários que enfrentam desafios na saúde mental têm risco quatro vezes maior de sair da empresa, e duas vezes maior de estar desengajado no trabalho. “Ou seja, os desafios da saúde mental estão impactando e custando muito para as organizações, além dos impactos na sociedade.”, afirma.
Quando o projeto-piloto começar no Brasil, Hilmar e Daniela já estarão vivendo a experiência há um ano. Hoje, eles já falam sobre suas percepções. “Empresas são feitas de pessoas. Se não investe nelas e no bem-estar, ela não acontece” afirma ela.
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