No topo de uma colina em Calçoene, a 374 km de Macapá (AP), um misterioso círculo de pedras chamou a atenção de moradores da região no início dos anos 2000. Eles não sabiam que haviam descoberto um verdadeiro tesouro arqueológico, inédito no País e que agora será transformado em um parque de preservação pelo Amapá, após a aprovação do projeto pelo PAC do Patrimônio Histórico.
Cercado de misticismo, o monumento é formado por 127 rochas de granito, algumas de até 4 metros de altura, em um raio de 30 metros de diâmetro. Ali provavelmente os índios pré-coloniais da etnia Paliku realizavam cerimônias religiosas e fúnebres, tendo arquitetado o posicionamento das rochas de forma a alinhá-las com o começo do solstício de inverno, o ponto exato em que o Sol nasce.
Quem assistiu à série Outlander certamente conhece a mística que envolve os círculos de pedras. Na série, as pedras de Craigh na Dun, nas Terras Altas da Escócia, são portais através dos quais algumas pessoas podem viajar pelo tempo. Craigh na Dun só existe na ficção, mas o Reino Unido abriga o círculo de pedras mais famoso do mundo, Stonehenge.
Embora os arqueólogos brasileiros rejeitem comparações com o monumento do Amapá, pelo menos uma característica eles têm em comum: as pedras são colocadas em posições para que seja possível observar o percurso do Sol no céu.
“Não temos nenhum caso parecido no Brasil. Pesquisas mostraram que existe um alinhamento com o Sol, então sabemos que quem construiu essas estruturas, esses cemitérios, conhecia também a posição dos astros, organizava cerimônias a partir de conhecimento astronômico. É muito interessante”, afirma o arqueólogo Eduardo Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de São Paulo (USP).
Na astronomia, o solstício é o momento em que o Sol alcança sua maior declinação em latitude, medida a partir da linha do Equador, o que ocorre duas vezes por ano: em junho e dezembro.
Estudos revelaram que durante o solstício de dezembro, entre os dias 21 e 22, é possível observar o movimento solar no céu por meio do círculo de Calçoene.
Para registrar essas ocasiões, os povos indígenas posicionaram rochas no solo. Pesquisadores sugerem que esses locais eram utilizados para cerimônias de oferendas pelos antigos habitantes. Por exemplo, o alinhamento de duas rochas indica o ponto exato onde o sol nasce no início do solstício.
Uma pedra de 2,5 metros de altura foi enterrada de forma que suas maiores faces estejam voltadas para o sul e para o norte. Durante o solstício, a luz não projeta sombras em nenhuma dessas faces principais.
Ineditismo
Eduardo Neves diz que, normalmente, no Brasil e na Amazônia, não existem muitas estruturas construídas com pedras, no passado, pelos povos indígenas. “A maior parte das construções existentes foram feitas com terra, eram aterros, canais, estradas, lagos, terra escavada ou acumulada”.
Um dos mistérios que ainda precisam ser investigados é como as pedras foram transportadas até o local e colocadas de pé. Abaixo delas foram construídas câmaras funerárias tampadas por blocos de pedra.
As técnicas para construção destes antigos monumentos são ainda desconhecidas. Uma das possibilidades é que os índios tenham aproveitado as falhas geológicas dos afloramentos de granito para destacá-las e depois levá-las até a colina.
“É uma coisa muito única e muito importante, e nesse sentido o sítio é super bacana, merece ser muito bem protegido”, diz Neves, que desenvolve inúmeros trabalhos na Amazônia.
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Histórico
As primeiras observações arqueológicas da região onde o círculo foi construído foram feitas no fim do século 19, mas foi apenas em 2005 que os arqueólogos tomaram conhecimento do monumento, após relato de moradores.
A proposta de construção do Parque do Solstício foi apresentada pelo Núcleo de Pesquisa Arqueológica do Instituto de Pesquisa do Amapá (NuParq/Iepa) e aprovada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em março deste ano. O gerente do Núcleo, Lúcio Costa Leite, diz que no local onde será criado o Parque do Solstício de Calçoene atualmente funciona como uma Base de Pesquisa do Iepa, onde o NuParq realiza pesquisas desde 2005. “Esta iniciativa representa um passo importante na valorização e preservação da história na região”, comemora.
No laboratório, Leite diz que uma das prioridades é formação de mão de obra local para sustentar o esperado crescimento do turismo. Ele também acredita que o projeto deve impulsionar investimentos em estrutura hoteleira e de restaurantes, além de novos acessos ao local, que fica a 16 km da cidade.
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