Vigília armada e pagamento em cesta básica: como atuam os guarda-costas de tartarugas na Amazônia

De funcionário de serraria a guardião de tabuleiros no médio Juruá, Francisco Mendes, o ‘Bomba’ ajudou a multiplicar quelônios

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Foto do author Juliana Domingos de Lima
Por Juliana Domingos de Lima

De agosto a novembro, a região do médio Juruá, na Amazônia, vive um espetáculo à parte. É nessa época que as tartarugas que moram no rio se aproximam da praia para a desova.

Elas enterram os ovos na areia, nos chamados tabuleiros, onde eles permanecem por cerca de 60 dias até serem rompidos pelas tartaruguinhas formadas.

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Até a década de 1990, esse evento corria o risco de deixar de acontecer. A captura predatória das tartarugas adultas para venda estava fazendo com que muitas deixassem de se reproduzir, colocando-as à beira da extinção.

O desaparecimento só não aconteceu porque as comunidades locais se organizaram para mudar a situação. Hoje, habitantes de áreas protegidas devolvem às águas do Juruá centenas de milhares de filhotes todos os anos, e o número vem aumentando a cada temporada.

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Francisco Mendes, 68 anos, conhecido como Bomba, protege as tartarugas há 31. No período em que elas se reproduzem, ele vigia a praia durante toda a madrugada para evitar que algum infrator se aproxime. Bomba alterna com a esposa e os filhos o monitoramento.

Francisco Mendes, o Bomba, é um dos monitores mais antigos no resguardo dos ninhos de tartarugas no médio Juruá. Foto: André Dib/Instituto Juruá

“Eles representam milhares de famílias. A história do Bomba se repete em cada curva do rio”, diz o pesquisador João Campos-Silva ao Estadão.

O ecólogo tem desenvolvido pesquisas para avaliar o impacto da conservação de base comunitária na megafauna, os animais de grande porte da Amazônia, como parte da expedição da Iniciativa Perpetual Planet da Rolex, que apoia instituições, organizações e indivíduos em ações de preservação ambiental.

Segundo ele, que é presidente do Instituto Juruá, a predação dos ninhos por humanos é de 99% nas praias sem proteção, e cai para 2% nas áreas protegidas. O preço de uma única tartaruga grande chega a R$ 1.000 no mercado ilegal.

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O pesquisador explica que o trabalho dos monitores para guardar os tabuleiros tem enorme impacto para a conservação não apenas das tartarugas como de outras espécies que também usam a praia para se reproduzir. É o caso de mamíferos aquáticos, como os botos, jacarés, aves migratórias e outras.

Uma lontra gigante predando um peixe. Estudos indicam que iniciativas de proteção ambiental geridas pela comunidade no Rio Juruá são diretamente responsáveis pela recuperação de várias espécies nativas. Foto: André Dib/National Geographic

A remuneração que as famílias recebem por esse trabalho intensivo e arriscado é de R$ 1.200 mensais em cesta básica, atualmente fornecida com o apoio do Ministério do Meio Ambiente.

“Nossos resultados indicam que a proteção comunitária é a estratégia mais eficiente para proteger a biodiversidade aquática. Atividades como a dos monitores de tabuleiros devem ser reconhecidas e valorizadas, porque sem eles muitas espécies teriam sumido”, diz Campos-Silva.

Filhotes de tartaruga-da-Amazônia prestes a serem devolvidas ao rio Juruá. Foto: André Dib/Instituto Juruá

A retirada de quelônios - nome que engloba tartarugas, cágados e jabutis - da natureza sem a autorização dos órgãos governamentais é considerada crime ambiental, assim como o comércio desses animais, conforme a Lei de Crimes Ambientais n.º 9.605, de 1998.

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Além de multa, pode caber pena de seis meses a um ano de detenção, exceto quando a caça é realizada por necessidade alimentar. A carne desses animais é considerada uma iguaria e tem um longo histórico de consumo na região.

Em nota, o Ibama afirmou que atua na preservação das espécies de quelônios da região amazônica por meio do Programa Quelônios da Amazônia (PQA), que realiza fiscalização, proteção de ninhos, resgate de filhotes e ações de conscientização ambiental, salvando cerca de 90 mil filhotes anualmente.

Lanterna, binóculo e espingarda

O turno de Bomba começa meia noite e vai até as seis da manhã. Ele percorre a praia na maior parte do tempo de canoa, subindo e descendo o rio.

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É tudo escuro e só se escuta o barulho dos bichos. Além do perigo do confronto com invasores, os monitores ainda têm que enfrentar “muita praga e carapanã”, tipo de pernilongo comum na região Norte.

Francisco Mendes, o Bomba, monitora os ninhos de tartaruga no médio Juruá há 31 anos. Foto: André Dib/National Geographic

“Para fazer esse tipo de trabalho, tem de ter um pouco de coragem. Se o cabra tiver medo, ele não faz. A gente anda em duas pessoas, no máximo. Trabalha só com fé em Deus e mais nada”, diz Bomba.

Durante décadas, as comunidades fizeram o monitoramento dos quelônios no Juruá de forma voluntária, quase sem nenhum apoio institucional. Isso começou a mudar no final da década de 1990, com a articulação das associações de moradores e a criação das unidades de conservação.

O tabuleiro que Bomba monitora fica na Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Uacari, gerida pelo governo estadual com o apoio do ICMBio e situada no município de Carauari (AM). Existem atualmente 25 tabuleiros na região que, juntos, têm gerado entre 750 e 900 mil filhotes em um ano. A soltura deles na natureza, depois de passarem um período em berçários, é um dia de festa nas comunidades.

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A Associação dos Moradores Extrativistas da Comunidade São Raimundo (Amecsara) atua em toda a região do médio Juruá há quase 20 anos e é uma das responsáveis por esse resultado.

Ribeirinhos de comunidades da Resex do Médio Juruá se reúnem para soltura de tartarugas no rio Juruá em Carauari (AM). Foto: André Dib/Instituto Juruá

Com o apoio técnico do projeto Pé de Pincha, ligado à Universidade Federal do Amazonas, a Amecsara apoia a atividade de monitoramento em várias frentes, desde o fornecimento de EPIs e combustível, a formação de monitores e agentes ambientais voluntários, até o diálogo com governos para a captação de recursos.

“A gente usa uma lanterna boa, porque é muito escuro, e também um binóculo noturno. E anda armado, com espingarda. Aí fica olhando lá do outro lado do rio. Quando passa uma canoa e vê que o cabra é desconhecido, tem que ir atrás”, conta Bomba.

As abordagens seguem um protocolo: os monitores se apresentam e perguntam se o infrator sabe que aquela é uma área protegida e de monitoramento, inspecionam os utensílios e podem até apreendê-los, advertindo para não pescar nos arredores do tabuleiro. Por fim, registram as informações sobre a ocorrência.

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“A gente acredita no diálogo como uma das principais armas para combater a atividade ilegal, diz o presidente da Amecsara, Raimundo Cunha. Mas enfatiza ser um trabalho de risco: “Você nunca sabe como o infrator vai reagir”, complementa.

Ovos de uma tartaruga-da-Amazônia gigante em ninho na Reserva Extrativista Médio Juruá. Foto: André Dib/National Geographic

Há cerca de 70 guarda-praias em atividade na região, distribuídos ao longo de algo em torno de 25 comunidades e mais de 1.500 quilômetros do Rio Juruá. Segundo Cunha, a associação tem atuado para incluir mais jovens e mulheres na atividade.

Bomba é um dos monitores mais antigos da região. Quando começou esse trabalho, ainda era a “época dos patrões”, em que o território onde ficam os tabuleiros pertencia a entes privados.

Hoje, a maior parte está dentro das unidades de conservação, mas também há tabuleiros fora de áreas protegidas, onde a predação humana é mais intensa.

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Nos anos 1980, Bomba trabalhava para uma serraria em Manaus e ia de barco buscar madeira no médio Juruá. Nessas idas e vindas, ele conheceu a esposa, Francisca de Freitas, natural da região, e acabou se instalando ali com a família.

Havia bem menos tartarugas nessa época do que hoje, segundo ele. Elas já estavam rareando porque a ordem era “virar” - colocá-las de cabeça para baixo para que não pudessem fugir - e levá-las aos patrões para serem comercializadas.

Uma tartaruga gigante retorna ao Rio Juruá após a desova. Foto: André Dib/National Geographic

Mas Bomba conta que virava duas ou três e deixava as outras escaparem por pena. “Eu sabia que se fizesse o que eles queriam, meus filhos, meus netos não iam nem ver tartaruga desovando. Esse foi o maior sentimento que me fez trabalhar procurando defender elas”, lembra.

Segundo Raimundo Cunha, a luta por recursos para dar continuidade ao monitoramento acontece ano a ano. “A gente tem que se adaptar ao recurso que tem, é uma atividade incerta. Hoje a gente tem apoio, amanhã pode diminuir, aumentar ou nem ter monitoramento de quelônio”, afirma.

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Os entraves na cadeia

O Instituto Juruá atua na região apoiando a governança territorial e estimulando as cadeias produtivas sustentáveis, como a do pirarucu, que já se consolidou como um dos pilares da bioeconomia na Amazônia.

Segundo Campos-Silva, o trabalho de monitoramento das tartarugas é um dos que menos tem retorno financeiro e social para as comunidades locais.

João Campos-Silva conversa com pescadores da comunidade Lago Serrado, no médio Juruá. Foto: André Dib/National Geographic

Como a venda é totalmente proibida, as famílias que realizam o monitoramento não podem ganhar com o manejo sustentável das tartarugas e a venda de uma parte delas. Com isso, captar recursos é sempre um desafio.

“É um exemplo claro dos gargalos que a gente tem na Amazônia, da dificuldade de estabelecer uma cadeia produtiva e da falta de regulamentação por parte do governo”, diz o presidente do Instituto Juruá.

O instituto defende a criação de um fundo patrimonial para oferecer uma remuneração justa às famílias envolvidas no monitoramento e garantir a conservação dos tabuleiros.

A estruturação desse fundo está sendo feita em parceria com a Amecsara, a Associação dos Produtores Rurais de Carauari (Asproc), a Associação dos Moradores Agroextrativista da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari (Amaru), o ICMBio, a Secretaria Estadual do Amazonas, o projeto Pé de Pincha e outras organizações de base que atuam no território.

Voluntário carrega tanques com filhotes de tartaruga-da-Amazônia para soltura em Carauari (AM). Foto: André Dib/Instituto Juruá

Além disso, as organizações trabalham na execução de uma experiência piloto da criação sustentável de quelônios pelas comunidades, com uma primeira venda legalizada programada para dezembro. A ideia é que o comércio controlado possa gerar recursos para os habitantes do médio Juruá a partir da regulamentação.

“Como no caso do pirarucu, a gente acredita que se protege muito mais o que se usa. Não adianta proibir e fingir que (o comércio) não existe, sendo que os ilegais estão vendendo diariamente. O que acontece hoje é que os comunitários estão protegendo, gerando um monte de filhote, e quem está se beneficiando são os ilegais”, diz Campos-Silva.

*A repórter viajou a convite da Rolex, pela Iniciativa Perpetual Planet

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