Análise | ‘Não fale comigo’: a história da diretora de teatro que desapareceu na Casa da Morte

Livro sobre a vida e morte de Heleny Guariba recupera depoimentos de colegas da Escola de Artes Dramáticas, familiares e companheiros de militância contra a ditadura

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Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:

Seria possível encontrar um paralelo entre a trajetória da diretora de teatro Heleny Guariba com a de Sócrates, retratado por Michel Foucault em A Coragem da Verdade? O significado e o valor da morte do filósofo grego para Foucault fundaram a racionalidade ocidental. Ela o levou a questionar a relação ética entre a coragem e a verdade. É esta uma das perguntas que surgem para o leitor dos mais de 20 textos reunidos por José Armando Pereira da Silva, na obra Heleny Guariba, destinos sequestrados (Com-arte Editora, 304 páginas, R$ 120).

A diretora de teatro Heleny Guariba, quando ensaiava 'O Casamento de Fígaro', no Teatro de Arena Foto: Álbum de Família

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A coragem da verdade é uma marca cívica, que indica o valor de um personagem. Heleny Guariba desapareceu depois de ter sido presa por integrantes de órgãos de segurança durante a ditadura militar. Ela foi professora da Escola de Artes Dramáticas (EAD), a convite de Alfredo Mesquita, diretor e fundador da escola, a quem o nome de Heleny foi sugerido pelo dramaturgo Augusto Boal, uma das almas do Teatro de Arena.

A EAD era então uma escola sui generis – funcionava no prédio da Pinacoteca do Estado. “O doutor Alfredo Mesquita era o diretor da escola, e todo final de ano fazia um discurso aos alunos, dizendo que eles estavam diante do último burguês liberal. Era uma figura única, acrescentou muito à escola e trouxe autores e obras magníficas”, contou a teatróloga Maria Thereza Vargas.

Na escola Heleny dirigiu a montagem de Doroteia, de Nelson Rodrigues. “Ficamos encantados com o trabalho dela”, disse Maria Thereza. Sobre o espetáculo, o crítico Sábato Magaldi, professor de História do Teatro na EAD e amigo do autor da peça, escreveu no Jornal da Tarde: “O estilo farsesco, ao invés de diminuir os valores da obra, ressaltou-lhes os valores profundos. Ganharam relevo o jogo entre a verdade interior dos indivíduos e a máscara social”.

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Depois, veio Jorge Dandin, de Molière, que lhe valeu o prêmio de revelação da Associação Paulista dos Críticos de Arte. Tinha 27 anos. E contava com a cenografia de Flávio Império e, no elenco, com uma atriz novata, que fazia ali a sua estreia no teatro: Sônia Braga.

O crítico Décio de Almeida Prado, nas páginas do Estadão, sentenciou: “Colocam-se os indivíduos dentro de uma perspectiva coletiva, substituindo o abstrato, o intemporal pelo concreto histórico (...). Parece-nos tratar-se das mais promissora estreia realizada ultimamente na Grande São Paulo.” Décio conhecia a visão de teatro proposta por Heleny.

Capa do livro Heleny Guariba, destinos sequestrados, organizado por José Armando Pereira da Silva Foto: Reprodução/ Estadão

Essa promissora diretora era uma jovem de confissão metodista que se casou cedo com o futuro professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), Ulysses Telles Guariba Neto, filho do general Francisco Guariba. Tiveram dois filhos. Cursaram filosofia na mesma USP.

“Heleny e eu fomos colegas desde o antigo ginasial, no Caetano de Campos.” Assim começa o primeiro dos textos que vai desnudando a formação da diretora. Sua autora é a filósofa Marilena Chauí, que se recorda de outros companheiros das duas amigas: José Serra, Carlos Guilherme Mota, Francisco Weffort e o primeiro marido de Heleny. Fora a amiga que convenceu Chauí a fazer filosofia.

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Heleny se formaria em 1964 em filosofia e teatro. Obteve uma bolsa de estudos do governo francês e foi a Lyon estudar com o diretor Roger Planchon, no Théâtre de la Cité. A jovem seguia também o cinema de Jean-Luc Godard. “O artista deve interferir no sistema ideológico de seu público”, afirmou Heleny em um de seus escritos, publicado pela Secretaria Estadual da Cultura.

A vanguarda a fazia pensar em elidir a separação com o público. “O espectador nunca é passivo”, escreveu. E passava a ser ativo na interação global com a obra. Foi, enquanto pensava no teatro de vanguarda e popular, que se envolveu com outra vanguarda, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), grupo que uniu comunistas, socialistas e nacionalistas para a luta armada contra o regime.

Cada depoimento do livro ajuda a reconstruir pouco a pouco esse caminho. O de Ulysses Guariba conta como, no começo de 1969, uma amiga procurou o casal. Era Iara Iavelberg. Pediu ajuda para esconder o capitão do Exército Carlos Lamarca, que fugira com armas de seu quartel, em Osasco, e aderira à VPR. Heleny e o marido esconderam o capitão em casa por semanas.

Heleny e Ulysses Guariba na recepção do casamento: estudantes de filosofia da USP, eles tiveram dois filhos Foto: Álbum de Família

A experiência levaria Heleny a um lugar de onde não quis mais voltar, como se a sua vida fosse o seu testemunho, onde só haveria espaço para a coragem da verdade. Cada texto nos mostra a jovem diretora de teatro em direção ao seu destino, como se fosse um fim inelutável, igual ao dos personagens das tragédias.

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Assim, a militância a distanciou do teatro e do marido, de quem se divorciou. Deixou para trás a montagem de O Casamento de Figaro, de Beaumarchais, que ela preparava para o Teatro de Arena, onde devia contar no elenco com Juca de Oliveira e Miriam Muniz. Ela acabaria presa em 1970 e torturada.

Seu ex-sogro, o general Guariba foi autorizado a visitá-la no cárcere, onde a jovem acompanhava a novela Irmãos Coragem em companhia de outras presidiárias, como Dilma Rousseff. Seu advogado, o futuro ministro da Justiça José Carlos Dias conseguiria sua liberdade provisória em 1971. É desse período algumas das cenas mais pungentes dos depoimentos reunidos no livro.

Ali está o encontro de Heleny com a professora Lilita de Oliveira Lima, que a conhecera na EAD. “A última vez que a vi foi em frente ao Teatro de Arena (centro de São Paulo). Corri para abraçá-la e ela, afastando-me aflita, disse: ‘Não fale comigo!’ Hoje sei que ela queria me proteger, pois estava sendo vigiada.”

José Carlos Dias durante leitura do Manifesto em defesa da democracia na Faculdade de Direito da USP, em 2022: ele defendeu Heleny durante processo na Justiça Militar Foto: Antonio Scarpinetti/SEC Unicamp

Ou ainda a última vez que o ator Antônio Petrin a viu, após a montagem de Jorge Dandin, quando se ajoelhou diante da amiga e pediu: “Heleny, você é muito mais importante para nós no teatro, na criação de espetáculos do que na guerrilha, na luta armada. Larga isso, que você já saiu da prisão, já pagou o que eles acham que você fez, volta e vamos retomar nossos trabalhos”.

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E ela falou: “Não. O meu destino está traçado”. Petrin insistiu e ela concluiu. “Não. Não tem volta.” Poucos dias depois, encontrou-se com seu advogado, que lhe deu a notícia de que sua prisão havia sido pedida novamente. Estavam diante do prédio de Dias, que a convidou para subir, pois eram vigiados. “Não, vou embora”, respondeu Heleny.

O criminalista pediu à cliente que lhe telefonasse a cada três dias e perguntou se ela tinha dinheiro. “Você, meu advogado, ainda se preocupa com isso.” Quase 50 anos depois, Dias relembrou: “E chorando, (Heleny) virou as costas e saiu correndo. Foi a última vez que a vi.” Ele ainda a defendeu no julgamento, em 1972, mas pressentia que não mais lutava por sua liberdade, mas por sua memória.

Heleny partira para o Rio de Janeiro em julho de 1971. Estava acompanhada por Paulo de Tarso Celestino da Silva, um dos dirigentes da Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo fundado por Carlos Marighella. Queriam investigar as suspeitas de que haveria um delator na VPR. A pista estava correta. Mas eles não sabiam quem era o traidor. Tratava-se do marinheiro José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo.

Acabariam presos no Rio e levados à Casa da Morte, em Petrópolis, segundo as pesquisas feitas por Eduardo Schnoor, cujo relato é um dos últimos do livro. O lançamento da obra, neste sábado, 5, no Memorial da Resistência, na antiga sede do Dops, na Luz, acontece um dia antes da 5.ª Caminhada do Silêncio pelas Vítimas de Violência do Estado, cujo evento terá como lema “Ainda estamos Aqui”. Heleny, a exemplo de Rubens Paiva, figura até hoje na lista de 210 desaparecidos políticos.

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Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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