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O Museu Nacional e a memória material: por que é tão importante preservar?

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'Encontros populares decretam que a Quinta é pra você. Gira a coroa damajestade, samba de verdade, identidade cultural. Imperatriz é o relicário no bicentenário do Museu Nacional' (trecho do samba Uma Noite Real no Museu Nacional) Foto: Museu Nacional/UFRJ

 

Eram 20 milhões de itens, entre eles Luzia, o mais antigo fóssil encontrado nas Américas. É a instituição científica mais antiga do País, ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi residência de D. João VI e de seus descendentes imperiais. Sediou a assembleia constituinte republicana no fim do século 19. Completou seu bicentenário em junho deste ano.

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Os noticiários não cansam de repetir cada uma dessas palavras, talvez na tentativa de tornar clara a dimensão do tamanho do estrago que o fogo, seguido pela água utilizada para combatê-lo, causou a documentos, objetos, coleções, estudos e ao mobiliário do Museu Nacional, localizado na Quinta da Boa Vista, zona norte do Rio de Janeiro.

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O acumulado destas informações relevantes, claro, nos faz prestar mais atenção à história da instituição. E acredito ser difícil alguém, hoje, negar a importância do edifício e de seu acervo. O que me questiono é se conseguimos compreender realmente o sentido da preservação da memória, o sentido de mantermos espaços - bastante custosos ao erário, é verdade - que se dediquem a guardar, estudar e compartilhar com o conjunto da sociedade conhecimento infinito.

Infinito porque, e este é o primeiro ponto, um museu e seu acervo sobrevivem (ou deveriam sobreviver) à nossa curta passagem de tempo na Terra. Cada nova geração que entra em contato com eles tem o poder de criar novas formas de saber partindo exatamente de um mesmo objeto, documento ou coleção. É egoísta pensar que os que virão depois de nós não poderão ter acesso ao conhecimento que nós tivemos. E é contraditório, portanto, esperar futuro (melhor) sem darmos a chance de esse futuro ir além do que nós fomos.

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O significado de museu A origem da palavra museu vem do grego mouseion, que significa "templo para as musas". Na Grécia Antiga, as musas eram as deusas da eloquência, da história, da música, da dança, das poesias, da tragédia, da comédia e da astronomia. Mouseion era um espaço de inspiração intelectual e divina. Soa romantizado, mas duvido que o leitor que tenha visitado um museu não tenha se sentido curioso, inspirado, provocado de alguma forma. Duvido que não tenha absorvido algo novo, refletido de maneira diferente, criado novas opiniões e significados sobre o que contemplava.

Viajar é uma História - O museu nos sambas-enredos de 2018 Este, para mim, é o maior barato de um museu: apesar de seu papel ser o de abrigar o que é considerado passado, ele está sempre pronto a assumir significados produzidos no presente e aqueles de um futuro que nem nós conheceremos. Essa é sua essência e é por isso que ele sobrevive à nossa existência: porque seu conhecimento não está preso a um tempo determinado como nós estamos. Ele se reinventa quantas vezes forem necessárias, quantas vezes mais for visitado.

O incêndio tomou rapidamente as salas do Museu Nacional. Foto: Fabio Motta/Estadão

Num momento em que tudo é tão virtual, contudo, a conservação da memória material parece ter perdido muito de seu sentido. Segundo Jussara Derenji, presidente do Comitê Nacional da Memória do Mundo da Unesco, "no tempo em que vivemos, parece que temos acesso a todo tipo de informação, que não temos mais a necessidade de termos um objeto, de termos a fonte física que já obtivemos por via midiática. Mas a conservação do documento é essencial. O objeto dá origem a outras formas de pesquisa, a outras leituras, a outras formas de interpretação. Isso é parte do processo de pesquisa. A base tem de ser mantida. É a nossa memória, é o equivalente ao lugar da memória. Essa base, essa visualização do objeto, vai desaparecer".

O que pode nos dizer a cultura material e os documentos?

Há uma semana, eu e um grupo de futuros historiadores nos deparamos com uma questão para a qual não demos muito valor. Tínhamos de apresentar um seminário sobre as ideias de um intelectual setecentista português que foi importantíssimo para a formulação de muitos projetos implementados em seu país de origem e naqueles onde Portugal tinha influência por volta dos 1770, como o Brasil. Entre os desafios lançados pela professora, estavam o de encontrar o documento original no acervo digital de alguma biblioteca portuguesa e - eis a questão intrigante - responder, entre outras coisas, qual tipo de papel utilizado por quem os escreveu.

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Os fósseis da preguiça-gigante e do tigre-de-dente-de-sabre que viveram há mais de 11 mil anos são dois expoentes do período da megafauna brasileira e encantavam as crianças há décadas. Foto: Fábio Motta/Estadão

Talvez o leitor, mais rápido no raciocínio do que fomos, entenda logo o porquê. Tipo de papel? Havia tantos outros assuntos e perguntas mais pertinentes. Que diferença faria sabermos qual tipo de papel? A resposta, que hoje me parece tão óbvia, veio da professora durante a apresentação: o papel, assim como a tinta utilizada, também têm história. Conhecê-los poderia nos dar indícios da época da confecção do documento; poderia responder se estávamos diante de uma cópia ou do original; poderia nos fazer compreender muitas questões em aberto e nos provocar novos questionamentos.

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Por que espaços antigos são nossos patrimônios?

De repente, aquele aspecto tão particular passou a fazer sentido. Notem, era algo até fácil de percebermos sozinhos. Mas fato é que o sentido só veio ao compartilharmos ideias, ao dividirmos o espaço do debate, ao termos acesso ao ensino que nos desafia a sairmos do lugar comum. Essa é a importância do espaço coletivo e público de conhecimento, seja ele a sala de aula ou a sala de um museu. É ele que, além de abrigar muitas histórias, pode carregar em si mesmo importância suficiente para o considerarmos patrimônio histórico.

É isso que faz com que, no mundo todo, se lute pela manutenção não só dos acervos, mas também dos espaços que abrigam estes acervos, ainda que isso custe muito mais caro do que a construção de novos espaços, cujos riscos de incêndio, entre outras coisas, poderiam até ser menores. Imagine você, por exemplo, conhecer os espelhos que pertenceram ao reinado de Luís XIV fora do Palácio de Versailles. Teria o mesmo sentido? Ou algo de fundamental se perderia na compreensão do que foi a França no século 17 e de como sua cultura e história, que passaram pelas salas daquele palácio, se desenrolaram nos anos seguintes?

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Manifestantes protestam em repúdio ao descaso que causou o incêndio. Foto: Wilton Júnior/Estadão

Preservar os espaços antigos, como é o caso do Palácio da Quinta da Boa Vista, significa dar a eles manutenção adequada e modernizar suas estruturas. Como afirma Jussara: "É necessário que haja uma política de proteção a esses prédios (do patrimônio histórico) de maneira geral e, especificamente, dos museus. Porque são prédios vulneráveis pela própria constituição e que contêm material altamente suscetível a ser consumido em um incêndio". Talvez isso custe caro. Mas cultura e ciência não foram feitas para gerar riqueza financeira à priori. Entretanto, a falta de investimento nem ambas pode, isso sim, gerar não só pobreza intelectual como também financeira. O custo, certamente, será muito maior lá na frente.

O sentido comum em crise

Pensar em preservar a fachada clássica de um palácio, um fóssil de 11 mil anos, a ossada gigante de uma baleia passa por resgatarmos sentidos para o que estamos fazendo aqui e agora. Não se trata apenas de podermos visualizar um futuro em que que, ao viajarmos para algum lugar, tenhamos ainda o privilégio de conhecer mais sobre pessoas, lugares e culturas passadas por meio da cultura material. Trata-se, antes de tudo, de encontrarmos o sentido que tudo isso tem em relação a nós mesmos.

É este sentido que, me parece, está em crise. Crise que se manifestou no fogaréu que acinzentou o amarelo claro do edifício histórico; que está na falta de repasse público para a manutenção adequada dos nossos acervos - em 2016, quando o Viagem produziu um especial do Rio para a Olimpíada, já havíamos nos deparado com os problemas estruturais do palácio e com as promessas de verbas futuras que nunca chegaram -; que está enraizado na omissão de nossos governos ao longo de anos.

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Na noite de domingo, estávamos perdendo parte do nosso passado. Mas junto com ele nosso presente e também nosso futuro. Aquele futuro sobre o qual tanto falamos, com o qual tanto sonhamos. Porque ainda que se salvem algumas peças e documentos, está perdida a continuidade, como disse Jussara Derenji, de um trabalho de anos e de muitas gerações.

O que se perdeu não volta, é verdade. Mas, como disse o diretor-adjunto do Museu Nacional, Luiz Fernando Dias Duarte, passado o luto é preciso pensar no futuro. Otimista que sou, concordo com o que diz Hannah Arendt sobre as crises: nelas, há sempre a oportunidade de abandonarmos as velhas e já ineficazes respostas para encontrarmos novos caminhos e sentidos. Quem sabe assim os próximos 200 anos da humanidade não possam ter melhor sorte?

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