O ano era 2017, estava pedindo indicações do que ler nas férias e uma amiga decretou: "Você precisa ler Elena Ferrante". Acatei a sugestão, embarquei com o primeiro exemplar da tetralogia napolitana debaixo do braço e terminei A Amiga Genial em poucos dias. Fui atingida pela mundial “febre Ferrante”, que já vendeu milhões de livros, e fiquei absolutamente obcecada em ler o segundo. Como viver sem saber o que acontece em seguida a esse casamento? Os romances relatam de forma crua e direta a amizade iniciada na infância de Elena Greco (Lenu), a narradora, e Raffaella Cerullo (Lila ou Lina), que atravessa 60 anos em meio a transformações e acontecimentos, delas e do mundo, como o feminismo, o machismo e a luta de classes. A relação eternamente dúbia entre as duas, de necessidade e repulsa, amor e ódio, briga e paz, inicia-se na periferia pobre e violenta de Nápoles, onde elas cresceram após a Segunda Guerra Mundial.
E é este bairro, que deixa marcas nas personalidades das personagens por toda a vida, justamente um dos cenários que gera fascínio entre os leitores de A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica, História da Menina Perdida. A boa notícia é que ele é real, é possível visitá-lo de graça e, ali, a ficção se materializa diante dos olhos. Fiz esse roteiro antes da pandemia do novo coronavírus, no segundo semestre de 2019.
Está lá o túnel de três bocas que, quando crianças, Lila e Lenu atravessaram de mãos dadas para conhecer o mar, aonde nunca chegaram, em A Amiga Genial. Este episódio dá sinais dos rumos que cada uma seguiria: Lenu se delicia ao soltar as amarras daquela vida miserável, enquanto Lila quer voltar. A escola, onde a permanente competição e inveja entre as amigas foi ganhando forma e se acirrando ao longo do tempo, também está lá, ao lado da igreja do bairro, cenário de acontecimentos como (alerta de spoiler) o assassinato dos mafiosos irmãos Solara em sua escadaria.
Fora dos limites do bairro é possível explorar uma outra Nápoles retratada nos livros. No roteiro, a elegante área de Chiaia, onde os rapazes do bairro arrumaram briga com jovens ricos, o Lungomare, em que Lenu se deslumbrou ao ver o mar pela primeira vez, e a Via Toledo e o Rettifilo, sempre cheios de gente e lojas movimentadas.
Além do fascínio que a história exerce, há ainda o fato de que a verdadeira identidade da autora é conhecida apenas por seus editores italianos. Desde a década de 90 ela publica sob o mesmo pseudônimo na editora Edizioni E/O. Até hoje, Ferrante concedeu parcas entrevistas por e-mail e apenas uma pessoalmente, para seus editores, é claro, publicada na revista literária The Paris Review em 2015. Nessa rara oportunidade, ela explica porque não aparecer é importante para seu trabalho: “O vazio criado pela minha ausência foi preenchido pela própria escrita”.
Não só pela escrita, mas pela possibilidade de se impressionar ainda mais ao conhecer cenários reais que ela descreve com tanto detalhismo, como você pode ver nos capítulos a seguir.
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