COPENHAGUE - Pelos padrões estabelecidos na maior parte do planeta Terra, este não é um dia especialmente maravilhoso para um passeio de bicicleta. A temperatura é de 5 graus celsius, e uma brisa impiedosa traz o frio úmido até os ossos. Nuvens cinzentas e sombrias ocupam o céu, providenciando um chuvisco apático.
Natalie Gulsrud zomba desses detalhes. Está chegando às 16h, a escuridão já está encerrando a sombria tarde de novembro. Ela precisa ir à creche para buscar seu filho de 5 anos – “cinco anos e meio”, ele corrige rapidamente, mais tarde. Ainda precisa parar para fazer compras e depois voltar para casa para o jantar.
Como dezenas de milhares de outras pessoas na elegante e frequentemente úmida capital da Dinamarca, ela pedala em seus turnos diários, contando com a rede de ciclovias mais avançada e mais usada do mundo. Ela não tem carro. Não quer um carro.
Ela encaixa sua bolsa no compartimento dianteiro da bicicleta de carga - uma engenhoca de três rodas feita para transportar crianças e mantimentos que é algo como o veículo utilitário esportivo de transporte familiar local. Ela sobe na sela, ajeita o sobretudo e se inclina ante o vento intransigente. “As pessoas aqui dizem que não existe clima ruim”, disse Gulsrud, de 39 anos. “Apenas roupas ruins”.
Do outro lado do Atlântico, Nova York acaba de proclamar intenções de gastar US$ 1,7 bilhão para expandir em muito a atual intrincada e traiçoeira rede de ciclovias da cidade, uma espécie de colcha de retalhos. Os líderes locais falam em desativar a cultura do automóvel e substituí-la por uma dependência saudável de veículos movidos a humanos. A missão está envolvida em objetivos nobres - abordar as mudanças climáticas, desobstruir o tráfego e promover exercícios.
A lendária estrutura de bicicletas de Copenhague foi impulsionada por todas essas aspirações, mas o elemento crítico é o mais simples: as pessoas aqui usam avidamente suas bicicletas - em qualquer clima, carregando jovens, enfermos, idosos e mortos - porque geralmente essa é a maneira mais fácil de se locomover.
Bike para levar caixões, cartas e malas
Um ex-vizinho de Gulsrud opera um serviço mortuário por bicicletas, pedalando para os que partem em seu último destino em caixões. Os transportadores de correio usam bicicletas para entregar encomendas. As pessoas usam bicicletas para ir ao aeroporto, às vezes puxando as malas com rodas ao lado.
De todas as viagens à escola e ao trabalho, 49% são feitas de bicicleta, segundo a cidade, contra 36% há uma década. Quando o governo municipal pesquisou recentemente os motociclistas de Copenhague sobre o que os inspira a andar de bicicleta, 55% disseram que era mais conveniente do que as alternativas. Apenas 16% citaram benefícios ambientais.
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“Não é de manhã, quando você está atrasado para o trabalho, que deseja salvar o planeta”, disse Marie Kastrup, diretora do programa de bicicletas da cidade.
Nas manhãs de dias úteis, cerca de 42 mil pessoas atravessam a ponte Rainha Louise no centro de Copenhague, trazendo moradores de bairros da moda no Norte para o centro medieval da cidade.
Em uma recente segunda-feira encharcada, uma mulher de salto alto e casaco trench coat pedalava uma bicicleta de carga enfeitada como um táxi da cidade, com três crianças pequenas no compartimento da frente. Um encanador atravessou o tráfego em uma bicicleta de carga, suas ferramentas guardadas no compartimento. As bicicletas superam em muito os automóveis.
A maioria das bicicletas era de variedades da velha escola, diferenciadas por sua utilidade e falta de apelo aos ladrões, cuja onipresença é uma fonte de preocupação constante entre as pessoas que pedalam.
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As 'Ferraris' de pedal
Mas no lado oposto da passagem, em uma vitrine decorada como uma boutique parisiense, um varejista, Larry vs. Harry, exibia sua elegante e reluzente bicicleta de carga de duas rodas, The Bullitt, que é vendida por até 43.450 coroas dinamarquesas (cerca de US$ 6.500). Três modelos estão estacionados na janela da frente, em verde, amarelo e vermelho, brilhando como Ferraris.
Nas proximidades da Nihola, uma marca de bicicleta de carga que é mais parecida com um Toyota do cenário do pedal, um showroom exibe compartimentos grandes o suficiente para acomodar quatro crianças. Pode-se carregar uma cadeira de rodas. As portas da frente se abrem, permitindo que crianças e cães entrem.
O status de Copenhague como um exemplo global da cultura de bicicletas deve-se ao terreno plano e à falta de uma indústria automobilística dinamarquesa, que poderia ter sequestrado as alavancas políticas. Problemas também tiveram seu papel.
O choque global do petróleo na década de 1970 elevou o preço da gasolina, tornando exorbitante o custo de dirigir. Uma economia desastrosa nos anos 1980 levou a cidade à beira da falência, privando-a de financiamentos para construir estradas e tornando as ciclovias uma alternativa atraente e econômica.
A cidade se focou em tornar o ciclismo seguro e confortável, separando as pistas dos carros em todas as ruas. Como o ciclismo capturou o interesse em massa, a melhoria da infraestrutura tornou-se uma boa política. Quando neva em Copenhague, as ciclovias geralmente são varridas primeiro.
Foi essa a situação que levou Gulsrud, de seu país natal, os Estados Unidos, a Copenhague. Criada no noroeste do Pacífico, estava cursando pós-graduação em políticas públicas e trabalhando para promover o deslocamento por bicicletas em Seattle quando optou por um semestre em Copenhague em 2009. Ela se apaixonou pela cidade, transferiu seus estudos e agora leciona administração de recursos naturais na Universidade de Copenhague.
Ela e o marido, Kasper Rasmussen, sua filha de 9 anos, Pixie, e o filho Pascal moram em um apartamento no sexto andar em Vesterbro, um antigo conjunto de lojas de artigos de couro que rapidamente se supervalorizou, produzindo contrastes peculiares. As prostitutas circulam em busca de clientes à noite, passando por lojas que vendem pinturas de mandalas tibetanas, produtos orgânicos e óleos essenciais.
“Noutro dia, ouvi pessoas conversando sobre se seus cães eram veganos”, disse Gulsrud.
Ela pegou Pascal na bela e meio desgastada vila que é o centro de atendimento infantil. Ele se recusou a vestir o casaco, apesar do frio. Ela o amarrou em uma espécie de arreio dentro de seu compartimento quando ele puxou o capacete. Ela fechou a cobertura de plástico transparente, protegendo-o do mau tempo.
Então ela atravessou poças de água até o supermercado, onde examinou as dezenas de bicicletas na calçada até encontrar um ponto grande o suficiente para acomodar a dela.
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Vindo do mercado, ela depositou suas compras - couve, leite, iogurte grego - no compartimento na frente de Pascal e andou alguns quarteirões até seu apartamento. Abriu o portão e pedalou pelo pátio.
As paredes estavam lotadas de bicicletas - a bicicleta de carga que sua vizinha, uma estudante de medicina, usa para transportar seus três filhos, incluindo o bebê de seis meses em um berço; a bicicleta de carga do marido, que inclui um motor elétrico para ajudar nas subidas; e as bicicletas padrão usadas pela família de imigrantes paquistaneses no andar de cima; pelo casal brasileiro-argentino e seus dois filhos pequenos; e por seu vizinho sueco, a esposa e os dois filhos.
Não faz muito tempo, a modernidade parecia destinada a algo como os Jetsons, com famílias circulando por propulsores a jato. Mas talvez este seja o futuro, uma retomada do passado, aprimorada pelo design contemporâneo.
“A infraestrutura está lá e é segura”, disse Rasmussen enquanto preparava um jantar reconfortante de sopa de abóbora e pão de fermento caseiro. “Por que você não deveria pedalar? É estúpido não andar de bicicleta.” / TRADUÇÃO CLAUDIA BOZZO
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