Influencers de viagem negros contam como desbravam o Brasil e o mundo

Com estilo bem diferentes de afroturismo, os viajantes relatam roteiros e experiências em suas redes sociais e blogs

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Foto do author Nathalia Molina

Como são muitos os tons de pele, são diversas as histórias no afroturismo. Jornadas de autodescoberta, escapadas em casal, roteiros com engajamento, aventuras só para sentir o vento no rosto. Em um país de maioria negra e que se acostumou a ver essa parcela da sua população apenas trabalhando para empresas do setor turístico, influencers de viagem negros relatam em suas redes sociais e blogs como desbravam o Brasil e o mundo. Conheça alguns neste Dia da Consciência Negra.

Uma bolsa de intercâmbio para a Irlanda deu início à série de viagens de Nataly Gabrielly Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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A baiana Paula Augot vive em Hong Kong, já morou em Paris e Londres e, há cerca de cinco anos, conta no Instagram @nomundodapaula histórias de suas andanças. “Novinha eu viajava, mas não tanto porque não tinha dinheiro. Quando eu fui morar na Europa, tinha uma facilidade: a distância pequena. De Salvador, em uma hora de avião, só vou para o Recife. Paris e Londres ficam só a 2h15 de trem. Dá para ir em um fim de semana, você termina querendo conhecer.”

Ela já esteve em 51 países, entre eles, Vietnã, Índia e Marrocos, o único na África. “Era pra eu ir para Etiópia neste ano”, conta. Na China, Paula mostrou a comunidade africana de Guangzhou, antigo Cantão. “É chamada de ‘cidade de chocolate’. Tem um comércio de roupas maiores para atender esse público, salão de cabeleireiro, restaurantes de comida africana.” Formada em Geografia, Paula diz que sempre gostou de povos e de suas histórias e que busca conhecer a cultura dos lugares aonde vai. “É assim que a gente termina aprendendo. Não adianta eu só tirar foto para postar no Instagram.”

Paula já esteve em 51 países, caso da Índia, e conta suas andanças no Instagram @nomundodapaula Foto: Instagram @nomundodapaula

Um país que ela amou e recomenda a viajantes negros é Cuba. “Fiquei em casa de família lá, e as pessoas olhavam pra mim maravilhadas. Estavam muito felizes porque por uma vez o turista, que é quem tem o dinheiro, era alguém como eles. Se sentiam representados, assim como me sentia também. As pessoas achavam que eu era cubana.”

No canal do YouTube, Paula produz uma série “Como é ser negra em…” e relata casos de racismo sofridos em alguns países, especialmente no Leste Europeu. Um deles, a Polônia, também está na lista de péssimas lembranças da paulistana Nataly Gabrielly. Ambas contam que Varsóvia e Cracóvia estão acostumadas a receber visitantes de diferentes lugares, mas que sofreram atos de racismo em pequenas cidades polonesas.

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“Tem olhares e olhares. Na Ásia, isso acontece muito por surpresa. A gente passa a vida toda vendo esse tipo de olhares, sabe quando é preconceito”, afirma a baiana. “É difícil, mas passei a contar essas experiências porque sei que as pessoas precisam saber. Eu digo ‘tal lugar é bonito, mas é muito racista para uma pessoa negra ir sozinha’. Recebo muitos comentários de viajantes negros me agradecendo. Você vê que está no caminho certo.”

Assim como ocorreu com Paula na França, a história de viagens de Nataly também começou com um intercâmbio. A paulistana ganhou uma bolsa para estudar inglês na Irlanda, em 2013. Foi emendando uma viagem em outra e terminou se tornando uma nômade digital, como gosta de dizer. “Visitei 19 países. Ensino o pessoal a viajar barato. Comprei passagens da França para Israel por US$ 40, dos Estados Unidos para a Espanha por US$ 169”, diz a Nataly, que dá suas dicas de economia no Instagram @viajesemlimites.

Nataly dá dicas de economia no @viajesemlimites e quer ser a primeira brasileira a dar a volta ao mundo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Agora ela quer se tornar a segunda negra e a primeira brasileira a dar a volta ao mundo. “Pretendo visitar 200 países. Das 150 pessoas que fizeram uma volta ao mundo, 99% delas são brancas, e 90%, homens. Não quero apenas compartilhar dicas e paisagens, quero que outras pessoas tenham a oportunidade que eu tive.” Para isso, ela está entrando em contato desde já com escolas dos países que vai visitar em busca de bolsas de cursos de idiomas para pessoas de baixa renda.

Protagonista de histórias lindas, que mesclam ações humanitárias e viagens, a enfermeira Rebecca Aletheia já morou temporadas em lugares como a africana Moçambique e a asiática Tadjiquistão, a 40 quilômetros da fronteira com o Afeganistão. “Quando acaba o projeto, consigo viajar ao redor dos países”, explica ela, que compartilha suas vivências no Instagram @rebeccalethei.

Rebecca Aletheia viveu em Moçambique, onde fez amigos como o dono de galeria de arte Ras Piry Foto: Instagram @rebeccalethei

Muitas vezes termina se envolvendo com as comunidades e ajudando a desenvolver melhorias. Aconteceu isso em Polana Caniço: “É um dos bairros mais perigosos e periféricos de Moçambique. A gente discutiu junto uma forma de eles fazerem renda recebendo visitantes”. Como Rebecca viaja com frequência, conhece muita gente e é comum receber das pessoas o convite para se hospedar na casa delas. "Também tem gente que me pede ‘você escreve meu roteiro?’ Em Moçambique, duas enfermeiras tinham o sonho de vir ao Brasil, mas lá eles só veem desgraça daqui, então têm medo.” Ela agitou tudo e a dupla amou as férias brasileiras.

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“Viajar para mim vem desde os meus pais. Eles se conheceram no Projeto Rondon na época da faculdade”, conta a enfermeira. “Minha primeira viagem sozinha foi para o norte da Argentina, Bolívia e Chile, quando me formei. Na minha família, tinha isso de materializar uma conquista com uma viagem.”

Encontro da @bitongatravel, perfil do Instagram que compartilha histórias de negras viajantes Foto: Instagram @rebeccalethei

Para ajudar a dar visibilidade às experiências de negras viajantes, Rebecca idealizou o Instagram @bitongatravel. Algumas dessas histórias estarão no primeiro encontro de viajantes negros, ideia de Manoela Ramos, conhecida pelo Instagram @escritoraviajante. O I Congresso O Mundo é Nosso aborda diferentes perspectivas do afroturismo. A partir de hoje, as 14 horas de conteúdo em vídeos estão liberadas e ficam disponíveis por dez meses aos participantes – ingresso a R$ 53.

Criado junto com Nicolas Guerra, do @mochilek, o encontro tem a participação dele, de Manoela, de Rebecca, de Paula e ainda de @lolacirino (sobre LGBTQI e gordofobia em intercâmbios), @negopelomundo (sobre identidade e ancestralidade), @maeefilhatrips (sobre reconexão em viagens de família) e @bichapretapelomundo (sobre gays e afroturismo), entre outros viajantes negros.

De 2017 até a pandemia, Manoela (@escritoraviajante) mochilou pelo Brasil e escreveu livros sobre a experiência Foto: Instagram @escritoraviajante

Natural de Cabo Frio, no litoral norte do Rio de Janeiro, Manoela mochilou de carona pelo Brasil de 2017 até o início da pandemia. “Fui viajar para me conhecer. Na faculdade de Marketing, estava muito desiludida. Quis ver como eu era fora da zona de conforto”, conta. Sobre as descobertas, ela escreveu Confissões de Viajante (Sem Grana) e Em Busca do Norte, ambos à venda em formato de ebook, por R$ 14 cada. “A comunidade preta me acolheu muito e me levava para muitos coletivos locais. Eu era uma menina preta com narrativa de liberdade, que normalmente é de sofrimento e aprisionamento”, acredita.

A mulher e a brasilidade são o foco das viagens de Cris Marques, do @raizesdomundo, entre os poucos influencers de viagem negros buscados por empresas para campanhas comerciais. “Em 2009, quando comecei o blog, não tinha essa representatividade que tem hoje”, lembra a brasiliense. “No Brasil, somos muito eurocentrados, a gente é podado dessa ancestralidade. Viajo muito pelo Brasil, pelo interior. É muito bonito ver as meninas se empoderando a partir do cabelo crespo e das tranças.”

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Cris Marques destaca o Brasil no @raizesdomundo e paisagens como esta do Jalapão Foto: Instagram @raizesdomundo
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Uma viagem ao continente africano em 2011, lembra Cris, ajudou com que ela mesma se desse conta da sua identidade. “Eu fui entender que tinha algo errado quando fui para a África do Sul. Ali virou a chave. Fui muito para lugares pequenos, e as anciãs ficavam impressionadas porque eu não era nem branca nem retinta”, conta. “Mas lá, entendendo que ser negro vem da sua ancestralidade, eles colocavam uma caneta no cabelo e, se não caísse, mostrava que você era negro. Quando fui ao Museu do Apartheid, o guia fez esse teste com a gente.”

Willy Barros conta que também mudou sua vida uma viagem de um ano e meio que ele fez a partir de um voo em 31 de dezembro de 2016. “Percorri 24 países, da Alemanha até a Índia só cruzando fronteiras terrestres, sem pegar avião”, diz o baiano, para quem viajar “nunca teve outra pretensão a não ser o verbo por si só, de partir, explorar, conhecer, se mover”.

A viagem por 24 países apenas por terra mudou a vida de Willy, do @eimaetovivo Foto: Instagram @eimaetovivo

Segundo ele, as experiências postadas no Instagram @eimaetovivo desde 2013 acabam fazendo com que outras pessoas conheçam os lugares e desejem estar ali também. “Dessa forma nos tornamos a figura em que o outro reflete o próprio sonho. Mas o que acontecia é que o reflexo que se via não batia com a imagem original de muitos. Às vezes, financeira; muitas vezes, racial. Quando enxergaram os iguais realizando, muitos passaram a acreditar no sonho de viajar, daí o caminho para realizar ficou mais real, mais otimista”, afirma Willy, que atualmente explora a Turquia em um “mochilão de mel” com a mulher, Sara Otoni.

Ele diz que nunca foi vítima de racismo em suas viagens, mas ressalta que essa realidade não vale para todos. “Ainda temos muitos relatos de preconceito e atitudes ignorantes quando a sociedade se depara com um negro na estrada, principalmente os de pele retinta. É uma longa estrada a se caminhar, mas que venham mais negros viajantes no Instagram, até o algoritmo nos notar, até as marcas apostarem na comunidade, até as pessoas começarem a seguir, e não perseguir.” Para ele, quanto maior a visibilidade, mais as pessoas vão se acostumar com a imagem de negros em todos os cartões postais do Brasil e do mundo.

“O racismo está em tudo por ser estrutural, e dizer isso não é ser radical. O racismo está nos hotéis em que não vemos negros como hóspedes, e sim trabalhando, normalmente na área da limpeza. O racismo está na porcentagem pequena de negros circulando nos aeroportos”, afirma Adão Moura, que mantém com a mulher, Luana, o Instagram @doispretinhosnomundo, com belas fotos de viagens por cachoeiras em Goiás, praias em Cuba e moinhos de vento na Holanda.

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Luana e Adão, do @doispretinhosnomundo, na paradisíaca Cayo Largo, em Cuba Foto: Instagram @doispretinhosnomundo

Ele reforça que há racismo dentro de fora do Brasil e lembra de um caso que ocorreu em Alagoas. “Uma turista me abordou perguntando quanto eu cobrava para fotografá-la pois eu estava com uma boa câmera na mão e ela pensou que eu fosse o guia turístico, e não o turista. É preciso quebrar essa barreira estigmatizante que bota todos os negros em uma mesma gaveta. Somos muitos, somos diversos, estamos em muitos lugares, ocupando espaços e, por isso, consideramos o nosso conteúdo tão importante e necessário.”

De acordo com eles, em 2020 há um número crescente de viajantes negros produzindo conteúdo nas redes sociais. “Porém, casais negros ainda vemos poucos. Mas podemos citar alguns que amamos: @universo_dos_browns, @viagempreta e @faveladospelomundo”, indica Adão. Com suas publicações, o casal sente que influencia negros e, desde o movimento Black Lives Matter, também brancos. E, daqui em diante, provavelmente famílias: o pequeno Bento, de 11 meses, já esteve com os pais na mineira Gonçalves.

Luana e Adão com o pequeno Bento na mineira Gonçalves Foto: Instagram @doispretinhosnomundo