Tenho consciência de que a afirmação pode soar herética. E que nas proximidades do Mediterrâneo os pecadores são condenados a borbulhar pela eternidade em uma panela de ratatouille. Mas a vida de um viajante curioso é feita de riscos. Gastronômicos, inclusive. Dito isso, a recomendação: deixe de lado os inúmeros Michelin instalados na Riviera Francesa (ou pelo menos tire-os do foco) e reserve palato e olfato para pratos muito mais simples, que algumas vezes nem pratos são. A refeição pode se resumir a uma singela flor de abobrinha recheada com carne, tão ao gosto dos moradores de Nice, preparada num simpático misto de bistrô e loja. E a sobremesa, a algumas cerejas vermelhas compradas no tradicional mercado da cidade - ou em seu congênere na vizinha Antibes (leia abaixo). No mais, algumas coisinhas degustadas aqui e ali, como as frutas carameladas da Maison Auer, destaque da casa de chá desde 1820 (não se sabe como, elas permanecem suculentas por dentro da casquinha). Ou uma torrada levemente coberta pelo irresistível purê de trufas de verão, na lista de delícias da Terres de Truffes.Petiscos que trazem mais do sabor local que os famosos e certeiros Michelin com suas várias regras a seguir - e suas refeições em cinco etapas. E não danificam tanto a silhueta que você quer exibir nas exigentes areias de Nice ou Cannes. Digo muito porque ninguém deveria esperar voltar da Riviera com o peso que saiu do Brasil, seja no corpo ou na bagagem. Mesmo sem a mesma quantidade de manteiga da tradicional culinária francesa, a gastronomia mediterrânea usa o azeite de forma nada parcimoniosa. Mais que azeite. Se for para abusar, faça com conhecimento de causa e propósito definido. Peça o azeite local e tente desvendar seu peculiar sabor. Para facilitar, saiba que o gosto lembra o de uma certa fruta antes de amadurecer. Tome um gole d"água, belisque um pãozinho e deixe as papilas entrarem em ação. "É banana!" Dirão que sim, que essa é uma característica da oliveiras de Cailletier, típicas de Nice - o azeite produzido na cidade tem qualidade excelente e garantiu uma AOC (denominação de origem controlada).A dica para uma degustação despretensiosa é entrar no Oliviera, o tal estabelecimento que mescla loja e bistrô. O libanês Nadim Beyrouti fará as honras da casa. E não deixará você sair de lá sem pelo menos 750 ml do azeite - até porque essa é sua menor embalagem. "Azeite é para cozinhar. Não é enfeite", diz. Para embalagens menores, siga até a L"Olivier, não muito longe dali.Quando eu disse para deixar os Michelin de lado - mesmo porque a Riviera pede uma passada em Paris, e lá você pode se estrelar à vontade -, tinha em mente lugares sem cerimônia como a Taverne du Safranier, instalada na parte antiga de Antibes. O cardápio inclui boas massas caseiras, perfeitas para comer depois da praia, e peixes frescos preparados de maneira tão simples que chega a ser genial (que tal grelhado com limão?). Acompanhados, claro, por uma garrafa refrescante de Vin de Pays du Var, na versão rosé. Quem precisa mais do que isso?Precisar não é bem a palavra, mas numa região de beleza tão sensorial, algumas ambições vêm à tona. Como ver o pôr do sol de frente para o mar e para a réplica do quadro Les Amoureux aux Remparts (1985), sabiamente instalado na orla de Antibes. Especialista em retratar casais, Raymond Peynet desenhou noivos cercados de pombas brancas, nas muralhas da cidade.
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