Depois de mais de um ano de pandemia, já sabemos que tudo mudou, e mudou muito. O nosso conhecimento sobre o novo coronavírus se ampliou imensamente (felizmente, hoje já sabemos, por exemplo, que o vírus se transmite muito mais pelo ar que por qualquer tipo de superfície), mas ainda seguimos vivendo com necessárias, fundamentais e inevitáveis restrições de mobilidade pelo menos até que a vacinação avance nacional e globalmente e a pandemia comece a ser controlada.
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No universo das viagens e do turismo, tudo mudou também, como já estamos carecas de saber. Mudanças tão profundas na própria dinâmica turística (comportamento do viajante, funcionamento de destinos e atrações, estrutura hoteleira) que nosso jeito de viajar provavelmente mudará de maneira definitiva, mesmo após o fim da pandemia. E isso não é exatamente algo ruim.
Calma que eu explico: do ponto de vista da sustentabilidade no turismo, algumas das mudanças que estão acontecendo durante a pandemia (seja no perfil dos viajantes, nos destinos ou na indústria da hospitalidade) podem ser um ótimo presságio de tempos melhores para o setor nesse sentido.
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Transformações para um turismo mais sustentável
No primeiro ano de pandemia da Covid-19, as emissões de carbono pela aviação diminuíam quase 50% e a emissão de gases de efeito estufa caiu 7% (dados da Carbon Monitor). Cada vez mais companhias aéreas fazem suas experimentações com combustíveis "verdes" e algumas até se comprometeram a serem carbon neutral em 10 anos - algo impensável no começo deste século.
Na hotelaria nacional e internacional, muitas propriedades finalmente abriram os olhos durante os últimos treze meses para a real necessidade de se tornarem cada vez mais sustentáveis para sua própria existência. Tivemos exemplos incríveis de sustentabilidade aliada à solidariedade na hotelaria internacional nestes tempos de pandemia, além de ações extremamente importantes em alguns lodges realmente sustentáveis na Amazônia brasileira.
Propriedades antes alheias a essa necessidade finalmente chegaram ao entendimento de que turismo sustentável não é pedir aos hóspedes que evitem trocar as toalhas diariamente. A sustentabilidade no turismo envolve não apenas a REAL preservação ambiental, como também amplo envolvimento social, econômico e cultural. Até o grupo hoteleiro Accor e a Expedia firmaram recentemente um acordo com a Unesco para promover o turismo sustentável e responsável em 3.358 hotéis da rede (252 no Brasil).
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Bons exemplos sustentáveis
Temos, sim, excelentes exemplos de hotéis que já nasceram 100% comprometidos com sustentabilidade no território nacional. Anavilhanas Jungle Lodge, Refúgio Caiman, Cristalino Lodge, Pousada Trijunção e Comuna do Ibitipoca, por exemplo, são alguns deles. A BLTA (Brazilian Luxury Travel Association) é uma associação do setor que reúne todos eles (e diversas outras propriedades) e que sempre norteou suas ações tendo a sustentabilidade como espinha dorsal.
Hoje, felizmente, há pequenas pousadas fazendo também um trabalho excelente nesse sentido, como a adorável Mata N'ativa, em Trancoso. Pouco a pouco, diferentes propriedades, de diferentes tamanhos e nichos, começam a entender que adotar práticas de turismo sustentável é essencial inclusive para a própria preservação da atividade turística a longo prazo.
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No cenário internacional, fala-se cada vez mais em turismo regenerativo, como já comentei aqui em outra coluna. Uma visão mais holística sobre o turismo sustentável, capaz de tornar destinos e regiões ainda melhores (mais infra-estrutura, mais respeito às comunidades locais, melhor distribuição de renda, mais preservação ambiental) através da própria prática turística.
Os excelentes lodges da Great Plains Conservation, em distintos países africanos, já nasceram 100% adeptos do turismo regenerativo e vêm servindo de inspiração para muitas propriedades mundo afora. Os hotéis do grupo Soneva nas Maldivas também são exemplos sensacionais de como esse tipo de turismo funciona de maneira extremamente bem sucedida.
A Preferred Hotels& Resorts lançou nesse ano uma nova marca hoteleira, a Beyond Green, reunindo apenas hotéis e resorts realmente focados em sustentabilidade e turismo regenerativo no mundo todo, do africano Xigera Lodge ao imbatível The Brando, na Polinésia Francesa. E a expectativa do mercado é que novas iniciativas do gênero se desenrolem nos próximos anos.
"Muitas pessoas concordam que a maneira como o mercado turístico estava crescendo não era mesmo sustentável", afirma Simon Mayle, diretor de eventos da ILTM e WTA Latin America. "Víamos as consequências do overtourism em Veneza e outros destinos, e era chocante. Esta é a oportunidade para mudar, transformar as experiências turísticas", defende.
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Carência de políticas públicas
Diversos hoteleiros, DMCs e prestadores de serviços no turismo em geral têm se empenhado de maneira significativa nos últimos anos em prol do turismo sustentável. Viajantes estão mudando suas prioridades nesse sentido também.
Mas, no caso do Brasil, infelizmente, vivemos um cenário extremamente complicado no que diz respeito à sustentabilidade e preservação ambiental e social em geral - que dirá no turismo. Por mais que uma parte da indústria turística esteja se esforçando para promover práticas turísticas mais sustentáveis, faltam quaisquer políticas públicas reais para tal. "Não temos atualmente nenhuma política pública de desenvolvimento sustentável para o turismo no Brasil. Portugal, por exemplo, criou todo seu plano de desenvolvimento turístico em torno do desenvolvimento sustentável", conta Simone Scorsato, da BLTA.
Investimentos em ações sustentáveis no turismo costumam ser classificados marginalmente como "alto custo" por alguns governos e empresários, sem atentar para o fato de que, além dos benefícios sócio-ambientais que trazem, os benefícios financeiros gerados a médio e longo prazo podem ser também gigantes. Um estudo realizado pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) pré-pandemia mostra que cada R$1 investido no instituto gerou outros R$7 em benefícios econômicos aos destinos no entorno dos parques nacionais atendidos!
Até o Bondinho do Pão de Açúcar, um dos mais famosos cartões-postais do país, investiu de maneira considerável em práticas sustentáveis nos últimos anos. Hoje, utiliza um sistema regenerativo de movimento, painéis solares fotovoltaicos, faz compostagem de quase 100% dos resíduos orgânicos, recicla anualmente em média 25 toneladas e atua no reflorestamento do Morro da Urca (em parceria com o Instituto Vida Livre).
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O grave problema do plástico
Mas, infelizmente, um grande inimigo da sustentabilidade continua tendo palco em parte da hotelaria: o plástico de uso único. Durante a pandemia, esse problema agigantou-se ainda mais, com muitas propriedades aumentando consideravelmente o uso do produto no último ano. Até mesmo redes hoteleiras que já tinham anunciado eliminação total de plástico descartável até 2022 já postergaram seus planos.
No Brasil, chegamos ao cúmulo de ver alguns resorts embalando absolutamente tudo em plástico (dos itens do café da manhã às garrafas plásticas) durante a pandemia. "Desenvolvemos protocolos sanitários que incluíam também a necessidade de individualização de objetos higienizados. Mas em nenhum momento, em nenhum estudo, recomendou-se que isso fosse feito com plástico", desabafa Simone Scorsato, CEO da BLTA (Brazilian Luxury Travel Association). "Na hotelaria em geral muita gente vem infelizmente usando o plástico simplesmente porque é mais fácil. É extremamente necessário retomarmos essa discussão", afirma.
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Viajantes mais preocupados com sustentabilidade
Diferentes pesquisas promovidas nos últimos meses mostraram que algumas situações e eventos ocorridos durante a pandemia contribuíram para tornar muitos viajantes mais conscientes e mais preocupados com a sustentabilidade em geral - e, consequentemente, com o turismo sustentável a longo prazo.
A recuperação ambiental que testemunhamos em alguns destinos simplesmente pelo fato de passarem meses alheios ao overtourism que os antes os assolava foi realmente impressionante para todos nós. E foi também o empurrão que faltava para muita gente começar a considerar as práticas mais sustentáveis no turismo essenciais desde já. "O turista que se dedica a esse tipo de turismo está cada vez mais exigente. E vários hotéis no Brasil estão se adaptando com rapidez a isso", afirma Mario Haberfeld, fundador do Onçafari, projeto pioneiro de sustentabilidade e turismo regenerativo no Refúgio Caiman, no Pantanal.
Uma pesquisa internacional divulgada no começo de 2021 pelo Airbnb mostrou que 51% dos seus entrevistados considera, sempre ou frequentemente, o meio ambiente e a sustentabilidade ao fazer suas escolhas de viagem. Quanto mais jovens os viajantes, maior é o índice que expressa essa preocupação.
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Dentre os brasileiros, esse índice é hoje sem dúvidas maior que no pré-pandemia; mas ainda está longe de se equiparar aos índices sobre a busca pelas formas de turismo mais sustentável no cenário global. "É possível que um grupo significativo, de 3 a 5% dos turistas brasileiros, tenha aprendido um pouco mais sobre seu papel nos destinos e adote conscientemente uma prática de turismo mais sustentável", diz Mariana Aldrigui, pesquisadora na EACH/USP e presidente do Conselho de Turismo da FecomercioSP.
Há mais de 10 anos coloquei a sustentabilidade como critério muito importante em todas as minhas escolhas de viagem. E sigo torcendo aqui para que, juntos, batalhemos constantemente por uma indústria turística realmente engajada e regenerativa.
Leia, busque sempre mais informações, troque ideias com outros viajantes e, principalmente, faça bom uso da curadoria fundamental do seu agente de viagens para garantir que suas escolhas de viagem sejam cada vez mais responsáveis daqui pra frente.
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