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Das sete colinas lisboetas direto para São Paulo

Opinião | Dona Olindinha, a rainha do pão da Madeira

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Por Margarida Vaqueiro Lopes

Aos 80 anos, a dona Olindinha podia ser apenas mais um número que contribui para as claras estatísticas portuguesas: com uma população deveras envelhecidas, Portugal tem atualmente 188,1 idosos por cada 100 jovens. Isso mesmo: há praticamente o dobro dos idosos do que de jovens, o que significa que, à semelhança de outros países europeus, estamos ficando velhos.

Mas voltemos à dona Olindinha, porque na verdade ela consegue ter mais energia que qualquer pessoa à sua volta - e não estamos todos com tanta idade quanto isso. Numa povoação chamada Santo António de Santana, a cerca de uma hora do Funchal, na ilha da Madeira, encontramos essa senhora amassando Bolo de Mel. Para quem não sabe, o Bolo de Mel é uma das receitas mais tradicionais desse arquipélago, e leva açúcar, mel de cana, canela, uma infinitude de especiarias, frutos secos, farinha... Dona Olindinha nos conta isso tudo enquanto, com mãos experientes, amassa a terceira leva de bolos da semana. É sempre assim. "Todos os dias da semana fazemos entre seis a sete amassaduras de pão - podem chegar às 12, ao final de semana - e amasso Bolo de Mel três vezes por semana", conta a sorridente Olindinha.

 

A vida não foi simpática para essa senhora de olhos generosos, que poucos depois dos 50 anos ficou viúva e teve de descobrir como sustentar a família. Maria Olinda Teixeira, nascida e criada em Santo António de Santana, encontrou no pão a resposta para a tragédia que lhe bateu à porta e, trinta anos depois, Olindinha é a grande responsável por ter colocado o pão de Santana num lugar de destaque da gastronomia regional da Madeira. Das suas mãos - e dos seus fornos a lenha - saem mais de 200 pães por dia. São depois vendidos nos espaços Delícias da Bia e Delícias do Santiago, um restaurante e uma pastelaria que ganharam o nome dos netos e que são geridos pelo filho. "Saí-me bem", admite a octogenária, sem nunca tirar as mãos do alguidar onde o bolo de Mel ganha forma. "É meia hora a amassar - e é uma massa pesada, porque tem muitos ingredientes - e depois meia hora no forno a lenha", explica. A iguaria da Madeira, apreciada por turistas e residentes, não é consumida por nenhum dos membros da família de dona Olindinha. "Ninguém cá em casa come", diz, dando risada. "Depois de amassar e vermos amassar, ninguém tem mais vontade", conta, divertida.

 

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O negócio, familiar, continua crescendo. A filha, Carla, foi funcionária pública durante muitos anos até se juntar à mãe na padaria que não queria parar de florescer. "Achei que tinha de vir ajudar a minha mãe", conta-nos enquanto pesa a massa e molda os pães que vai colocar a levedar antes de mais uma fornada. Nunca tinha feito pão, mas se a mãe conseguiu mudar de vida aos 52 anos, Carla também o soube fazer.  Há ainda uma outra funcionária, Graça, que vai passando por nós em silêncio enquanto limpa o chão, retira pães do forno e garante que tudo está no lugar para quando for hora da próxima fornada.

Dos terrenos em redor da casa onde vive, Olindinha tira o resto dos seus alimentos: as couves, a carne, as batatas, a batata doce que coloca no seu pão - "há pessoa que não põe batata doce (chama-se 'Amarelinha de Santana') no pão. Põe somente farinha e água, o que não tem piada nenhuma", lamenta Olindinha. A batata doce faz o pão mais fofo, permite que ele dure mais tempo e fica também mais húmido, o que lhe dá outro sabor e consistência. Outro interesse. 

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A padaria passa despercebida por quem não sabe da sua existência. O espaço, pequeno e muito limpo, é um oásis de eficiência - e um regalo para quem, como eu, adora pão. Por todo o lado há farinha, pão levedando ou pão saindo do forno. E hoje há também Bolo de Mel, porque Olindinha aproveitou que teria jornalistas visitando para mostrar como se faz. A padaria dona Olindinha é lugar de romaria sobretudo antes do Natal, quando a ilha recebe ainda mais visitantes por conta do bom tempo e da aposta que faz nas atividades dessa quadra.

 

A Madeira se transforma, durante o Advento e o Natal, numa espécie de presépio gigante que conta muitas histórias em cada lugar por onde passamos, e a cada vilarejo visitado há mais uma curiosidades regional que pode ser descoberta. Por exemplo, sabia que nos presépios madeirenses é muito comum haver frutos e cereais decorando o cenário? Isso porque a população aproveita a época para agradecer as dádivas do ano anterior, e para pedir que as próximas colheitas sejam fartas. Assim, os presépios são também verdadeiros exemplos da cultura da região, e deixam no ar os aromas dos alimentos que fazem parte do dia a dia dessas populações.

 

O arquipélago ganha um gosto especial quando se visita entre o Natal e o Ano Novo - afinal, as festas da Madeira são conhecidas pelas celebrações faustosas, com fogos de artifício de muitos minutos - mas é sempre especial visitar um lugar onde em tão pouco espaço convive tanta cultura diferente. E, sobretudo, tanta comida tão boa. 

Mas sobre isso escrevo um pouco mais à frente. Hoje, ficamos com o pão. No próximo texto, trago mais alguma comida e, claro... o vinho!

Opinião por Margarida Vaqueiro Lopes
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