Se álcool em gel é a nova amenity, protocolo é o novo roteiro de viagem, a ser seguido à risca, e de máscara. Enquanto uma vacina contra o coronavírus não existir, o ato de viajar muda radicalmente. Qualquer empresa de turismo agora tem entre suas práticas de higiene a oferta do antisséptico nas áreas comuns e uma série de normas relacionadas à saúde. Do lado do viajante, as alterações no estilo de viagem também não se restringem a incluir itens a mais na necessaire.
Com tantas dúvidas na bagagem, os brasileiros devem começar a se aventurar pelo território nacional na pós-pandemia, dizem os especialistas entrevistados pelo Estadão. “Do mesmo jeito que o Brasil abandonou o marketing em mercados internacionais, parou também de se comunicar com o brasileiro. Mas, enquanto as fronteiras estiverem fechadas, viajaremos com prazer pelo Brasil. É possível que a vontade reprimida de viajar nos faça ver os atrativos brasileiros com outros olhos”, afirma Ricardo Freire, à frente do site Viaje na Viagem.
O desejo de viajar pelo próprio país é visto em diversos lugares. Na China, por exemplo, uma pesquisa da consultoria Oliver Wyman mostrou que 77% dos 1 mil chineses entrevistados, de 18 a 24 anos, dão preferência a destinos nacionais para a primeira viagem depois que a covid-19 estiver vencida. Segundo a Organização Mundial do Turismo (OMT), os desembarques internacionais devem cair entre 60% e 80% no mundo em 2020. Isso significa de 850 milhões a 1,1 bilhão de viajantes estrangeiros a menos.
No Brasil, diversas campanhas incentivam o turismo doméstico. O movimento #ViajePeloBrasil reúne em torno de 20 associações do setor, como o Sistema Integrado de Parques e Atrações Turística (Sindepat), que tem Beto Carrero World, Bondinho Pão de Açúcar e Beach Park entre seus associados. No site da CVC, por exemplo, os destinos mais buscados para viagens a partir do quarto trimestre são Maceió, Gramado e Rio de Janeiro.
Entre vizinhos
Outra tendências apontadas pela OMT para a retomada das viagens são as bolhas regionais, distantes de ser uma realidade para o Brasil na América do Sul. “O que mais se configura no mundo são as bolhas, por exemplo entre a Austrália e a Nova Zelândia e entre os países bálticos”, explica Luiz Gonzaga Godoi Trigo, professor do curso de Lazer e Turismo da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP). “Mas aqui Uruguai e Argentina estão com fronteiras fechadas para nós.”
É que o Brasil faz um movimento diferente de outros países, que saíram da quarentena para reaver suas atividades, incluindo viagens, após vencerem o pico da covid-19. A curva de contaminação e mortes pelo coronavírus segue subindo no País, no entanto vários destinos, hotéis e atrações já anunciam a reabertura, com expectativa crescente no número de visitantes a partir de julho. “Aqui ainda não é o momento em que eu recomendaria para viajar”, alerta Francisco Ivanildo de Oliveira Júnior, médico do Hospital Emílio Ribas. “Quando a gente está falando de turismo está falando de deslocamento. A doença viaja com as pessoas.”
Em escapadas a cidades próximas, outra tendência forte na pós-pandemia, “o risco é um pouco menor porque normalmente são situações semelhantes em relação à doença”, segundo o infectologista. “Considerando que não tem vacina e que, quando tiver, a imunização de todo mundo vai demorar meses, as tendências de viagem ainda serão bem restritas no próximo ano”, afirma Trigo, professor da USP. “As primeiras viagens serão de carro, trem, ônibus, com distanciamento, higienização rigorosa. Os últimos a voltar serão os navios.”
Escapadas
Para Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Serviço Social do Comércio no Estado de São Paulo (Sesc-SP), que organiza excursões e passeio a preços acessíveis, a segurança de viajar apenas com parentes ou amigos, reforça a tendência de escapadas de carro. “Creio que roteiros personalizados ganharão força, mas não acredito que isso impeça a retomada dos pacotes turísticos, desde que revestidos dos protocolos de segurança sanitária necessários aos novos tempos.”
Por causa do medo causado pelo coronavírus, muita gente deve evitar o avião no início de retomada, então os brasileiros irão viajar mais de carro. Isso levou operadoras do setor, como a CVC, a focar também nesse estilo de viagem. “O turismo de proximidade deve crescer. Por exemplo, as pessoas saírem de São Paulo e irem para Campos do Jordão para passar o final de ano, em vez de irem, como iam no passado, para o Nordeste, o Caribe ou a Europa”, disse Leonel Andrade, presidente do grupo CVC Corp, em uma live promovida pelo Estadão. “Nós estamos desenhando tudo com os grandes destinos, com hotéis, pousadas, casas. Nosso objetivo é chegar no final de junho com todo um endereçamento de produtos e serviços para o segundo semestre.”
O Circuito Litoral Norte, formado pelas prefeituras de Bertioga, Caraguatatuba, Ilhabela, São Sebastião e Ubatuba, vem trabalhando com empresas como CVC, Abreutur, Decolar, Interep e Orinter, para criar pacotes com uma ou mais cidades da região. Desde 4 de junho, hotéis e pousadas de Monte Verde, no sul de Minas Gerais, funcionam com até 40% da ocupação – a Agência do Desenvolvimento de Monte Verde e Região (Move) já negocia um aumento nesse limite, para depois de 17 de junho, com o município de Camanducaia, a que pertence o distrito.
Depois da Serra Gaúcha, primeiro destino nacional a voltar a receber visitantes no início de maio, outro importante destino do Brasil, Foz do Iguaçu celebrou o aniversário da cidade, em 10 de junho, com a reabertura para o turismo. A cidade das cataratas anunciou que pontos turísticos e hotéis de maior porte terão barreiras para identificar e testar visitantes com sintomas compatíveis com a covid-19, como febre, gripe ou problema respiratório nos 14 dias anteriores.
Em Bonito, cidade do Mato Grosso do Sul que é referência em ecoturismo no País, desde 1º de junho está permitido o funcionamento da hotelaria e de atrativos turísticos, desde que suas respectivas associações apresentem protocolos de biossegurança ao município e seus integrantes se comprometam a cumprir essas normas. A retomada do setor é esperada a partir de julho. “Vários destinos de ecoturismo já tinham normas. Por exemplo, na flutuação em Bonito, é uma prática corriqueira a esterilização de bocais e roupa de neoprene”, diz Israel Waligora, sócio-fundador da Ambiental Turismo.
OUTRAS TENDÊNCIAS
Turismo dentro do Brasil
“O brasileiro médio, incluindo e talvez até principalmente o turista de alta renda, tem um enorme déficit de viagem pelo Brasil. Alguém que tire uma ou duas semanas de férias anuais pode passar dez anos de férias sem sair do Brasil com imenso proveito”, afirma Ricardo Freire, especialista no assunto. Para Marcio Pochmann, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em vez de campanhas para trazer mais viajantes de fora, deveria se pensar em incentivar o turismo doméstico. “O gasto lá fora de brasileiros é maior do que o que o estrangeiro faz no Brasil. É um problema da sociedade, não do setor. A gente não valoriza o que nosso.”
Voos curtos
No começo, as viagens de avião tendem a ser de no máximo três horas. “Tem de usar máscara o tempo todo, mas é desconfortável”, diz Luiz Gonzaga Godoi Trigo, professor da USP. E acrescenta: “Na classe econômica, vai todo mundo amontoado. Lá no meio, é impossível você não se contaminar. As pessoas vão ter medo no começo.”
Destinos conhecidos
Outra tendência de comportamento apontada por especialistas será a de retornar a lugares conhecidos. “Acreditamos que os viajantes passarão a adotar é a busca por destinos que já tenham familiaridade, locais que trazem bem-estar e garantia de bons momentos. Isso significa que o brasileiro vai acabar viajando para destinos que já conhece e vai deixar para explorar novas opções mais para frente”, acredita Claiton Armelin, diretor de Produtos Nacionais da CVC.
Ecoturismo
Depois de um longo período de isolamento em casa, os especialistas imaginam que os viajantes estarão propensos a se aventurar por destinos de ecoturismo, na praia e na montanha. “Quando da abertura, estão falando que deve haver uma procura por natureza. Fico alegre de ouvir isso, mas não acho que é uma coisa automática”, diz Israel Waligora, sócio-fundador da Ambiental Turismo. No retorno das atividades, ele acredita que destinos de ecoturismo em São Paulo voltarão antes dos demais também, até por questões econômicas, já que são mais baratos que saídas para destinos fora do Estado. “Em um ano e dois anos, imaginamos um público com menor. Uma simplificação da viagem deve se impor num primeiro momento. Petar, caminhadas na Serra do Mar, Socorro e Brotas são destinos que devem ter mais procura. É muito importante essa retomada porque beneficia os receptivos locais.”
Público controlado
Primeiro destino nacional a voltar a receber viajantes no início de maio, Gramado trabalha com uma capacidade reduzida em hotéis e atrativos. O Bustour, que passa por pontos da cidade gaúcha e da vizinha Canela, está operando novamente. Com no máximo 50% da capacidade, o ônibus hop on hop off está rodando desde 5 de junho, mesma data do retorno do Bier Park, parque cervejeiro na Rua Coberta. Por sessão, apenas seis pessoas entram com intervalos de 40 minutos entre as visitações.
Selos de segurança
São vários selos sendo lançados. O Ministério do Turismo tem o Turismo Responsável, já usado por agências e hotéis como o Barretos Country Thermas Resort, um dos primeiros no interior paulista a conseguir a certificação. No mundo, antes de todos os destinos, o Turismo de Portugal lançou o selo Clean & Safe. Agora é o primeiro da Europa a receber o selo Safe Travels do World Travel & Tourism Council (WTTC), conselho mundial de turismo composto por cerca de 200 CEOs e presidentes das principais empresas do setor no planeta.
Cautela na compra
Depois das viagens não realizadas devido à pandemia, o brasileiro deve recorrer ainda mais a avaliações positivas de empresas e a regras de cancelamento, acredita Henrique Lian, diretor de Relações Institucionais e Mídia da Proteste. “No caso do turismo, é preciso ter cuidado, pois existem muitas empresas pequenas que podem se dissolver rapidamente. A possibilidade de ter de entrar em uma lista enorme de credores numa vara de falência e recuperação judicial para tentar receber definitivamente não é uma boa perspectiva.”
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