Especial:
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O que as empresas tradicionais estão fazendo para conquistar o mundo virtual

‘A Amazon é um gigante de papel’

Texto: Márcia De Chiara / Fotos: Hélvio Romero

02 de outubro de 2019 | 11h27

O shopping center, grande símbolo do consumo, está sendo sacudido pela revolução digital. Ela colocou o ato da compra na palma da mão do consumidor: de posse de um smartphone, ele pode fechar negócios em qualquer canto do planeta. Mas, para José Isaac Peres, fundador e presidente de um dos maiores grupos de shopping centers do País, o Multiplan, apesar de todo o avanço tecnológico, o shopping não vai acabar. “Faltam nos aplicativos usados pelas lojas online a energia que existe nas lojas físicas”, afirma. Segundo ele, compra é impulso e emoção, algo que depende muito do contato entre os humanos

Peres, que há 45 anos comanda um grupo que reúne 19 shoppings espalhados pelo País, cujas vendas somaram R$ 15,5 bilhões no ano passado, compara os shoppings às velhas praças e boulevards, onde as pessoas iam para ver e serem vistas. O contato humano, diz, é o grande diferencial do varejo. E o maior espetáculo dos shoppings são as pessoas, não as lojas.

Mas, mesmo com a convicção de que varejo é gente, o grupo está investindo numa plataforma digital que reúne um aplicativo de compras e um serviço de entregas em domicílio das vendas online para os shoppings da rede. Nesse projeto, ainda em fase de teste no maior empreendimento do Grupo, o BarraShopping, no Rio, já foram investidos mais de R$ 100 milhões. Os resultados, porém, ainda são tímidos, e concentrados nas vendas de comida.

A justificativa do empresário para bancar a aposta digital é facilitar a vida do consumidor, que terá mais informações sobre os produtos e mais opções de compra. Para os lojistas, ele acredita que a plataforma digital pode ampliar as vendas.

Peres diz não perder o sono por causa do avanço digital e que, pessoalmente, não é dependente de tecnologia. “Acabei de comprar um telefone Motorola que só fala, porque tenho saudade do tempo que eu podia falar”, conta.

Quanto à investida da Amazon, a gigante online que anunciou recentemente frete grátis para os assinantes do serviço Prime e deixou os varejistas com a pulga atrás da orelha sobre os próximos passos, o empresário é taxativo. “A Amazon é um gigante de papel. É uma empresa que vale US$ 1 trilhão e tem um lucro inferior a 1% do capital. Isso vai até quando?”

Série

A série de entrevistas Choque Digital será publicada semanalmente pelo Estadão e mostrará os esforços de empresas de diversos setores para buscar respostas para os desafios impostos pelas transformações digitais

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Como o senhor vê a transformação digital no varejo?

Nós não vivemos no mundo digital, mas no mundo real. O mundo real é o mundo das pessoas, das coisas. Quando a tecnologia começou avançar, havia uma questão polêmica: a tecnologia acabaria com o comércio tradicional? Nós começamos a investir em tecnologia por outras razões, não com essa preocupação. Na minha visão, as pessoas vão ao shopping porque elas precisam de contato. Os shoppings, na verdade, substituem os antigos boulevards, as antigas praças, que não existem mais. A insegurança no Brasil também foi outro fator. Indiretamente, as famílias procuram mais amparo, mais segurança no shopping.

Por que, então, o grupo começou a investir em tecnologia nos shoppings?

O mundo digital é muito importante porque é um facilitador de decisões. Ele leva a informação e te permite tomar uma decisão. Muita gente compra muitas coisas pela internet. Nós entendemos que isso pode ser uma alavanca para os lojistas venderem mais. Nesse sentido, há cinco anos estamos trabalhando em cima de uma plataforma digital para dar ao lojista um novo canal de distribuição. Essa plataforma digital vai dar ao consumidor o poder de escolha. Ou seja: se você quer amanhã uma bolsa preta, essa plataforma vai te dar as bolsas que têm nas lojas dos nossos shoppings e os preços. O que vai facilitar a sua escolha. Você vai economizar um pouco mais de tempo.

O maior espetáculo do shopping são as pessoas, não as lojas”

Mas não existe um certo conflito nisso?

Sim, porque a compra é uma fonte de prazer. As pessoas gostam de ver o produto que compram, de experimentar. A compra no mundo digital é muito sem emoção. O comércio sempre foi uma grande fonte de emoção. Tanto é que as pessoas viajam para os principais centros, como Nova York, Paris, Londres, Roma, o circuito das estrelas, e vão às compras. Se as pessoas que viajam não pudessem comprar nada, acho que metade não viajaria. O que estou falando aqui é da natureza do ser humano, não fui eu quem disse isso, foi Aristóteles, 3 mil anos atrás: o homem é essencialmente um animal gregário, ele não vive sozinho. Mas as pessoas têm a ilusão de que, com o celular, elas têm 150 amigos ali, têm a sensação de que não estão sozinhas, porque elas conversam, veem. Mas, ao fim do dia, elas vão ver que estão em casa sozinhas. Estamos vivendo um fenômeno hoje que é o aumento da ansiedade e da depressão.

Por que o sr. acha que está acontecendo isso?

O prazer na vida não está nas coisas. Se você não puder compartilhar com outra pessoa aquilo que você tem, não faz sentido. Não adianta você ter um avião, um iate, para viajar sozinho. As pessoas não entenderam que os nossos sentimentos primários, como medo, fome, uma série de outros, não mudaram com o passar do tempo. O que eu acho fantástico. O que nós criamos foi mais conforto, mais facilidade para as nossas vidas.



Quem é
José Isaac Peres, 79 anos, é empresário e economista, formado pela Faculdade Nacional de Economia da Universidade do Brasil. Carioca, criou aos 22 anos a sua primeira empresa, a incorporadora Veplan, quando ainda era estudante. Oito anos depois essa pequena empresa se tornou uma companhia de capital aberto. Depois, começou a empreender no setor de shoppings e fundou a Multiplan em 1975. Em 1979 inaugurou o primeiro shopping em Belo Horizonte (MG). Em 2007, a Multiplan abriu o capital na Bolsa, acelerando sua expansão. Hoje, o grupo tem 19 shoppings no País, cujas lojas venderam R$ 15,5 bilhões em 2018.

E como o varejo se insere nesse cenário?

As questões básicas de contato humano são predominantes no nosso negócio. O shopping é um grande ponto de encontro, é o lugar de a gente ver e ser visto, de falar com pessoas. É diferente da indústria.

A digitalização do varejo acaba com os shoppings?

Não, porque você não vai acabar com o homem. Para acabar com o shopping, você tem de dizer que o prazer agora é estar sozinho. O maior espetáculo do shopping são as pessoas, não são as lojas. Se você for a um shopping fantástico e não tiver pessoas, você vai perder até o interesse em comprar. Nós temos essa energia que falta nos aplicativos tecnológicos. À noite, você vai dormir abraçada com o celular? O Steve Jobs (fundador da Apple e criador da iPhone) atirou no que viu e matou o que não viu. Num primeiro momento ele (que difundiu o smartphone) acabou com o maior fantasma da humanidade, que é a solidão. Com o celular, você não está sozinho. Mas, ao mesmo tempo, o smartphone isolou as pessoas. Hoje, jovens adolescentes jogam com outros jovens, mas ficam trancados no quarto e não saem de casa. Resultado: hoje, estamos vendo que nós não prescindimos do afeto. Quem vive sozinho tem um cachorro ou um gato. A gente precisa de afeto. O afeto você encontra num ambiente saudável, em contato com as pessoas, falando com elas. A tecnologia veio para transformar o mundo, porém com uma ressalva: o ser humano não mudou.

Estamos investindo na plataforma digital com objetivo de facilitar a vida do consumidor prioritariamente”

Diante desse novo cenário, como o grupo Multiplan opera os shoppings?

Nossa estratégia é dar prazer às pessoas. Se você me perguntar se o meu negócio é imobiliário ou é varejo, honestamente o meu foco hoje não é olhar só para isso. Isso é só um complemento, é o acessório. O principal é que as pessoas venham ao shopping pelo prazer de estar aqui. Sempre coloquei nos meus shoppings diversão para criança, pista de patinação no gelo, cinema, centros médicos, etc. Em Canoas (RS), o último shopping que inauguramos, fizemos um parque fantástico, com fontes luminosas que se movem de acordo com a música. Fizemos uma pista olímpica de patinação no gelo que funciona o ano inteiro. Nos nossos shoppings, sempre o varejo respondeu por 45% das operações e o entretenimento por 55%. Quase 50 anos atrás, quando comecei no setor de shoppings, os americanos colocavam o cinema fora do shopping porque diziam que quem vai ao cinema não vai ao shopping. O shopping americano era um distribuidor de commodities: não tinha restaurante, entretenimento para criança, não tinha espaço para interatividade. Era tudo muito máquina registradora. Mas agora temos notícias que os Estados Unidos estão copiando a gente. Eles inverteram as posições das participações de entretenimento e varejo.

O sr. acha que a digitalização provocou essa mudança?

Não, isso já era uma tendência, independente da digitalização.

Como está a digitalização dos shoppings do grupo?

Lançamos em agosto um aplicativo com o objetivo de prestar serviço aos nossos clientes, facilitar a vida deles. Eles podem fazer compras nas lojas e receber em casa e consultar outras funcionalidades também. Tenho uma frase que é uma pequena filosofia de botequim: se você não quer complicar a sua vida, facilite a dos outros. E a tecnologia nos ajuda nisso. O varejista, por sua vez, aluga uma loja e nós entregamos para ele uma outra loja virtual por meio do nosso aplicativo, que será gratuito. Também compramos em maio uma participação numa empresa de entregas, a Delivery Center. A entrega será feita em até uma hora. Por enquanto, o aplicativo e as entregas estão em fase de teste no BarraShopping (RJ), que é o nosso maior shopping. Operando bem lá, nós vamos replicar rapidamente esse modelo para todos os shoppings. Agora vou falar com toda a franqueza: estamos testando isso, mas as pessoas preferem ir ao shopping, porque o shopping é um programa, é um prazer.

Quanto foi investido no projeto digital?

Muitos milhões, mais de R$ 100 milhões nesse negócio. E continuamos investindo. A cada ano, isso nos custa de R$ 30 milhões a R$ 40 milhões.

Há risco de o shopping virar um showroom?

Não, a não ser que o aluguel seja muito alto. O showroom não atende tanto à demanda do consumidor. Porque a compra é impulso, é emoção.

A venda digital atrapalha o faturamento do shopping?

Há lojistas que tentam burlar o contrato que têm com o shopping transformando as lojas em ponto de entrega de mercadorias. Ele vende no digital e não quer registrar como uma venda feita no shopping. Algumas lojas usam o shopping como vitrine, fazem a venda fora e não pagam o porcentual sobre vendas. Isso é uma fraude, e evidentemente o lojista pode perder a loja se isso ficar provado.

Como o sr. vê o avanço da Amazon no Brasil?

A Amazon vai avançando porque a capitalização dela parece que é infinita. É uma empresa que vale US$ 1 trilhão e tem um lucro inferior a 1% do capital. Isso vai até quando?

A tecnologia é uma droga e a abstinência do celular hoje cria ansiedade, insegurança, tal qual uma droga faz”

O sr. acha que a empresa não se sustenta?

Algumas empresas (de tecnologia) sim, como Google e Apple, por exemplo, que são altamente lucrativas. Mas, no caso da Amazon, a relação custo/benefício do investidor hoje é menos de 1%. É um gigante de papel. Um dia as pessoas vão perceber que estão investindo na Amazon, mas lucro ela não dá. Um dia o investidor vai cair na real e perceber que está investindo numa empresa que, quando der lucro, ele pode ter morrido. Porque a vida tem um tempo. Pode ser que, com a tecnologia seja infinita, mas, por enquanto, tem um tempo.

Quando a Amazon anunciou o frete grátis com o uso do Prime, as ações de outros varejistas caíram na Bolsa. O sr. não vê a empresa como uma ameaça para o varejo?

Não mudou nada. Ela está muito tempo rodando pelo Brasil.

Mas o custo do Prime (R$10 por mês) não é muito baixo?

Teoricamente sim. Você paga uma mensalidade e a empresa entrega as compras gratuitamente. A gente pode fazer amanhã um frete grátis aqui. Isso não é o que vai prender o consumidor. O Magazine Luiza já fazia frete grátis e ele não prescinde de estar no shopping, porque onde ele vende é no shopping. As pessoas, antes de comprar uma geladeira, por exemplo, querem ver o produto.

O sr. perde o sono por causa do avanço da tecnologia?

Não. Acho que a tecnologia é uma droga. A abstinência do celular hoje cria ansiedade, insegurança, tal qual uma droga faz. Se você fuma maconha ou usa qualquer droga é porque ela te dá uma sensação de conforto. Mas essa droga chamada tecnologia ou celular, que é muito boa para determinadas finalidades, cria uma dependência. Entre uma notícia ruim e outra, você fica pensando: será que alguém vai me mandar alguma coisa boa?

O sr. se vê dependente da tecnologia digital?

Eu acabei de comprar um telefone Motorola que só fala, porque tenho saudade do tempo que eu podia falar. Você pode imaginar quantas mensagens de texto eu recebo por dia, é uma barbaridade. Não tenho tempo de responder tudo isso. Japão e China começaram fabricar um telefone que só fala, porque as pessoas estão entendendo que isso aqui (celular) é uma ficção. O problema é que a mensagem de texto tem um defeito: você escreve e a pessoa que lê interpreta de uma forma e, às vezes, sem querer, diferente. Quando você fala, pela entonação da voz e a maneira de se colocar, as pessoas já sabem se é para o bem ou se é para o mal.

Acabei de comprar um telefone Motorola que só fala, porque tenho saudade do tempo que eu podia falar”

O sr. é uma pessoa que defende os modos antigos, de quando a tecnologia não predominava?

Não. Eu defendo a tecnologia tremendamente. Quando começou a revolução tecnológica na medicina, eu sabia que ela daria um salto milenar. Hoje temos experimentos que indicam que já nasceu a criança que vai viver 180 anos. Parece surreal. Dentro de cinco anos, as máquinas 3D farão órgãos humanos com o seu próprio material genético. Você não vai ter mais transplante: vai trocar um coração velho por um coração novo, um rim fatigado por um rim novo. Esse é o mundo que se propõe a dar mais tempo de vida com qualidade para as pessoas. Porém os humanos não vão deixar de ser humanos.


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